– relata uma menor que trocou a protecção dos pais pela vida nas ruas de Maputo
Quarta-feira, dia 1 de Junho. O dia nasceu com fulgor especial. O jardim de Junho concentrou seu âmago e irradiou alegria. Lucrando com o ensejo, domingo saiu à rua: a data prometia luminosidade para as suas páginas, afinal comemorava-se o do Dia da Criança.
Mas, no lugar de fotografar as andorinhas que compõem esta Primavera, esbarrou-se com a triste realidade de “Nanda”, uma menina que se abriga num tecto sobrevoado por abutres, em uma das ruínas da cidade de Maputo.
A estória da menina “Nanda”, como preferiu ser identificada, é marcada por um dia-a-dia de perigos e dolências. A nossa reportagem encontrou-a no alto de um edifício em ruína. Vestia dois pares de calções jeans, uma blusa de malha e calçava chinelos. Os cabelos pretos e encaracolados devidamente plantados na sua cabeça, fechavam o seu visual e ressaltavam sua beleza que se estende em mais ou menos um metro e quarenta e cinco centímetros de altura. Abordámo-la com o intuito de colher o seu depoimento no âmbito do Dia da Criança. Desconfiada, pediu-nos que esperássemos: “deixem-me lavar a cara e escovar os dentes. Mas o que pretendem, mesmo?”, Saber dos teus gostos; o que gostarias de ser quando fores adulta, vociferamos da beira da estrada.
O que nos restou foi contar com a sorte, afinal os seus amigos já se mostravam de orelha em pé, e denotando algum desgosto pela nossa presença. Longos quinze minutos passaram-se, pouco da menina se via. Os diferentes compartimentos da ruína que alberga um considerável número de crianças e jovens engoliram-na. O cenário mudou e deu lugar a raides de seres de pouca idade, que se movimentavam de um ponto para o outro, ao mesmo tempo que emitiam gritos determinando “não vos queremos aqui! Eh eh eh… rua daqui!”.
Como era de prever, minutos depois, a nossa “Nanda” apareceu do seu palácio para dizer que “não me deixam falar…”. Quem?, Perguntamos, “eles”, respondeu, timidamente. Restou-nos colocar em prática a nossa experiência como mãe, pai: “filha”, dirigimo-nos à menina, só queremos que mandes uma mensagem para as outras crianças. Diga isso ao vosso chefe. O olhar e apelo de ‘mãe para filha’ surtiu efeito. “Nanda veio ao encontro do domingo e abriu seu coração.
FOI À PRAIA E NÃO
MAIS VOLTOU PARA CASA
“Nanda” é uma menina doce e afável. Em nenhum momento da conversa aceitou revelar a sua idade, mas afirmou ser natural de Maputo. Viveu até ao ano de 2012 com os seus pais, na Matola, onde fez o ensino primário em uma das escolas da Machava. A dada altura, passou a morar com os tios em um dos bairros da cidade de Maputo, “mas continuava a estudar”. Tudo corria de feição, até que, por influência de amigas, empurrou para um plano inferior a sua formação académica. “Fui largando, aos poucos, por causa das minhas amigas. Deixávamos de ir à escola e andávamos a passear”, revelou. As suas excursões tiveram como resultado a sua instalação nas ruas da cidade de Maputo.
Tudo começou, certo dia, quando, “saímos de casa com destino à praia”. “Nanda” estava com suas companheiras. Após se refrescarem nas águas da Costa do Sol,dirigiram-se até uma casa abandonada, na baixa da cidade de Maputo. “Quando lá chegamos, elas fumaram muito, fumaram, fumaram…”. O que fumavam?, questionamo-la, “suruma”, denunciou. Ao final desta viagem, suas amigas mandaram-na para um canto, e ordenaram “senta-te aqui! Queremos fazer dinheiro.”, testemunha a menina. Havia chegado a hora da labuta:As crianças foram prostituir-se.
À hora do regresso “era muito tarde”, não havia meio de transporte público que as levasse da cidade aos seus locais de proveniência. A solução foi “arranjar uma esquina para dormir”. Contudo, a providência tornou-se perene, e, “nunca mais voltamos para casa”.
Passados alguns dias, “Nanda” arranjou um namorado, ficou grávida e o bebé veio ao mundo, num lar construído numa das ruínas da cidade de Maputo. Desafortunada, perdeu seu filho, vítima de doença, e tempos depois o seu companheiro, o pai da criança, para as celas. “Está preso até hoje”, diz-nos. O motivo não foi revelado, o certo é que a menina da nossa estória arranjou outro parceiro, com quem vive até aos dias que correm.
CASAR-SE PARA
SOBREVIVER NA SELVA
Como sói dizer-se a fila andou para “Nanda”. Hoje, conforme contou, tem outro companheiro de quem espera um futuro ditoso. De qualquer forma, esta foi a alternativa encontrada para se livrar dos dissabores daquele ambiente: “ter namorado quando se vive na rua é sempre bom”, de contrário, “os outros rapazes atacam, sexualmente,e em grupo”.
Este facto é confirmado por sua amiga, “Sheila” (nome fictício): “É verdade. Eu própria vejo-me obrigada a dormir com a minha amiga e o respectivo namorado para escapar do sexo em grupo”, denuncia.
““Sheila” é como uma irmã para mim, a nossa amizade é antiga”, emenda “Nanda”. A verdade é que esta amiga arrastou outra menor para o boqueirão.
A rotina destas crianças passa por, levantar-se depois de o sol raiar, “tomamos banho, preparamos o mata-bicho, alimentamo-nos”. Segundo conta a “Nanda”, a primeira refeição tem sido depois da 12 horas, quando “o meu ‘marido consegue algum dinheiro’. O dito ‘marido’ éum jovem de vinte e tal anos, que ganha a vida lavando carros na estrada. Nessa lida, o companheiro da menor, chega a amealhar oitocentos meticais por dia.
É uma realidade que activa a indignação de qualquer ser vivente: por que motivo vivem na rua, menina?, perguntamo-la, ao que respondeu “um dia, sairemos daqui”. De momento, passam os dias e as noites em pedras gigantescas. É aqui onde estendem os seus esqueletos e se distanciam dos sonhos. O de “Nanda” não será realizado de forma nenhuma, pelo menos não tão já, a julgar pelo curso actual da sua vida: “gostaria de ser médica, mas não consigo voltar a estudar. Aqui a convivência é difícil”. Naqueles locais desmantela-se a vida: “Rasgam todos os papéis, materiais escolares”, destroem sonhos e enfraquecem almas.
Na maioria dos casos, as famílias desconhecem o destino dos seus filhos: “a minha não sabe que vivo nestas condições, pensa que estou em casa de um namorado”. Um namorado sim, pois, segundo revelou, o seu parceiro não é conhecido pelos seus familiares.
“Nanda” está desguarnecida e encara diariamente o perigo. Que o digam, também, as outras meninas que passam por provação, enfrentando, não raras vezes abutres de armas em punho, que em nome da lei tiram proveito de qualquer circunstância.
SEXO EM TROCA DE LIBERDADE
A presença de crianças na rua tem merecido a atenção das autoridades governamentais a vários níveis. Várias são as medidas adoptadas para retirá-las do abismo, ora negociando com as respectivas famílias, de forma a reintegrá-las no seu meio de origem, ora encaminhando-as para instituições vocacionadas no acolhimento de vulneráveis.
Entretanto, segundo relato de “Nanda”, os espaços onde vivem entregues à sua sorte,várias vezes, “são invadidos por membros da Polícia, os que usam farda cinzenta. Eles dispersam-nos como se de cães nos tratássemos; pegam em bacias cheias de água e derramam-na em nossos corpos e pertences”. Tudo é feitoem nome da Lei e Ordem.
Escapar destas chateações envolve, nalguns casos, sessões de sexo, por vontade própria ou forçado. “Pedem para praticarmos relações sexuais com eles. Quando nos recusamos fazem à força. Muitas meninas passam por isso aqui, mas ninguém gosta de falar sobre esse assunto. Têm medo”.
Este é um facto que torna o garante da nação envolto em um manto tenebroso. Prostra as flores que nunca deviam murchar.
No caso de “Nanda”, apesar de ter arte nas mãos, “sei fazer todo tipo de tranças”, e um sonho pintado de rosa “gostaria de ser Dra … (“Nanda”), a menina inclina-se para o lado espinhoso da vida. Ainda assim, resta-lhe alguma consciência para dizer às outras crianças: “estudem para garantir o vosso futuro”.
Carol Banze
carolbanze@snoticias.co.mz
Fotos de Jerónimo Muianga
Foto de Inácio Pereira