Esta semana, houve festa na maioria das unidades sanitárias e serviços de saúde da província de Niassa, e não só. A 12 de Maio, comemorou-se o Dia do Enfermeiro. A classe aproveitou a ocasião para enaltecer o trabalho por ela realizado e clamar por melhores condições de vida e de trabalho.
Alguns enfermeiros entrevistados pela nossa reportagem foram unânimes em afirmar que a classe ainda precisa de mais profissionais, para fazer face à crescente demanda que se verifica na província com a explosão demográfica registada nos últimos anos, que fez passar o número de habitantes de pouco mais de 600 mil, até à proclamação da independência nacional, para os actuais um milhão e 400 mil, que se pensa existir em toda a província de Niassa.
As nossas fontes reconhecem, entretanto, os esforços que o Governo está a realizar no sentido de dotar o sector de saúde de meios materiais e humanos, para garantir uma melhor assistência aos milhões de moçambicanos, a maior parte dos quais residindo nas zonas mais recônditas e sem condições de prover serviços sanitários de qualidade.
Enquanto isso, alguns enfermeiros que aceitaram falar com a nossa reportagem trabalharam, antes de escalar a cidade de Lichinga, em distritos cujos centros de saúde carecem de tudo. Nesses locais, segundo as suas palavras, um enfermeiro faz, simultaneamente, o papel de agente de serviço e de clínico, entre outras funções, havendo casos em que, contra os hábitos culturais e vontade das comunidades, as parturientes são assistidas por enfermeiros no lugar de parteiras.
“Para quem nunca trabalhou nas zonas recônditas do nosso país, colocar um enfermeiro para atender mulheres, pode não parecer grande coisa. Mas, a verdade é que este problema chega a fazer com que muitas mulheres prefiram dar à luz em casa, com todos os riscos daí resultantes, em vez de procurarem uma unidade mais próxima para um parto institucional e seguro”, explicaram os enfermeiros por nós contactados.
Outra preocupação comum está relacionada com a pretensão de os enfermeiros conseguirem bolsas de estudo para aumentarem os seus conhecimentos em universidades do ramo, evitando que optem por cursos que, mais tarde, os desviem para outras ocupações, em detrimento da profissão que, em criança, sonharam abraçar.
Eis depoimentos de alguns enfermeiros de Niassa, contactados pelo domingopor ocasião do 12 de Maio, Dia do Enfermeiro:
Enfermagem exige amor e dedicação
– Sousa Eduardo
Sousa Eduardo é enfermeiro básico. Tem de 29 anos de idade, seis dos quais dedicados à enfermagem. Depois de trabalhar em Milepa, uma zona do interior e de difícil acesso, localizada no distrito de Mavago, em Niassa, Sousa foi transferido para a cidade de Lichinga por decisão do governador David Malizane, como recompensa da sua dedicação à Saúde.
Encontramo-lo na enfermaria de cirurgia do Hospital Provincial de Lichinga, cuidando, como sempre o faz, dos doentes ali internados. Confessou ter ingressado na enfermagem por vocação. “Sempre sonhei, quando crescido, ser um enfermeiro”, disse Sousa Eduardo, confessando que“os serviços das enfermarias exigem de nós, uma grande dedicação e amor ao próximo, por ser aqui onde se observam os primeiros cuidados de saúde, depois de o doente sair do bloco operatório”.
Para Sousa, a diferença entre um enfermeiro e um médico está no tempo de formação. Enquanto a formação de um enfermeiro básico leva um ano e meio, a do médico, dura, no mínimo, seis anos, para além de que o enfermeiro executa o que o médico prescreve. “O mais importante é que todos nós trabalhamos em equipa e o resultado é atribuído a todos”, acrescentou.
A passagem por Milepa, em Mavago, marcou, pela positiva, a carreira de Sousa. Sozinho, Sousa foi tudo durante o tempo em que esteve a trabalhar naquela parcela do Niassa: clínico, agente de serviço, etc. Quando se verificasse alguma rotura no stock de medicamentos, a nossa fonte era obrigada a percorrer os mais de 200 quilómetros que separam aquele local da sede distrital, a pé, de bicicleta ou de mota. “Lembro-me que durante o período chuvoso, tive que gastar dinheiro do meu salário para alugar motos. Sem esse esforço pessoal, não era possível repor os fármacos”, disse.
Sousa diz ter aprendido a ser eclético, pois tinha que responder a todas as solicitações, numa zona “praticamente abandonada”.
De recordar que Milepa fica situado nas margens do rio Rovuma, na zona onde desagua o rio Lucheringo. Durante o período chuvoso, todo o povoado fica submerso, por se localizar sobre uma zona pantanosa, sendo obrigatório o uso de bicicletas ou motos para se chegar até lá. Os seus residentes socorrem-se doutro lado da fronteira, a Tanzania, para conseguir alguns produtos de primeira necessidade.
Pela negativa, Sousa recorda o facto de ter permanecido durante muito tempo em Milepa a atender uma ou duas pessoas por dia. “A maior parte das pessoas daquela zona prefere a medicina tradicional do que a convencional”, lamentou.
Sousa tem um sonho. Quer aumentar os seus conhecimentos para servir melhor e cientificamente os que necessitam da sua colaboração. “Gostaria que fossem criadas condições materiais e humanas no Hospital Provincial de Lichinga para respondermos às preocupações dos nossos utentes”, pediu, a terminar.
O salário do enfermeiro é magro
– Elias Maruelane
Um dos enfermeiros que aceitou falar com a nossa reportagem é Elias Maruelane. Tem 58 anos, dos quais 34 ao serviço da enfermagem, faltando apenas um ano para ir à reforma. Está afecto na Direcção da Saúde da cidade de Lichinga, concretamente no centro de saúde da capital provincial.
Maruelane explicou à nossa reportagem o grande segredo para um enfermeiro realizar com destreza o seu trabalho, apontando a delicadeza, carinho e aptidão como sendo os elementos que devem ser permanentemente observados na hora de lidar com os doentes.
De comunicação fácil, algumas vezes utiliza a ironia para sustentar as suas conversas. Elias disse passar maior parte do seu tempo no centro de saúde do que em casa. “Gosto do que faço”, explicou, acrecentando que todos os dias “acolhemos doentes normais e de emergência”.
O nosso entrevistado está afecto à sala de tratamento do Centro de Saúde de Lichinga, tendo como actividade principal assistência aos doentes através de pensos, injecções, avaliação da tensão arterial, curativos, bem como confortar os pacientes que precisam de um carinho especial.
Instado a pronunciar-se sobre a diferença que existe entre a sua função (enfermeiro) e a do médico, Elias Maruelane esclareceu que um médico prescreve e o enfermeiro cumpre o que está prescrito, não havendo, portanto, alguma semelhança entre as duas funções. Reconheceu, entretanto, que um enfermeiro, dadas as suas características ecléticas, pode desempenhar algumas tarefas de um médico, principalmente quando estiver afecto numa unidade de saúde sem médico.
“O mais importante é que todos têm uma responsabilidade perante o doente, todos, em equipa, podem observar o mesmo doente e os resultados que aparecerem são de toda a equipa e não apenas do médico ou do enfermeiro”, explicou.
Perguntamos se se lembrava de alguns episódios , fossem positivos e/ou negativos – que marcaram a sua longa carreira de enfermeiro – ao que nos respondeu: “os meus episódios marcantes são todos aqueles que aconteceram durante um trabalho coroado de êxitos e admirados pelas pessoas individual e colectivamente, enquanto os negativos são aqueles momentos frustrantes”, apontou.
Sobre o que gostaria de ver melhorado para o bem da carreira de enfermeiro, Elias apontou o magro salário, o atraso na progressão e mudança de categoria para, segundo ele, melhorar a qualidade dos serviços prestados e evitar-se que haja um descontentamento na classe, para além de o enfermeiro ser lembrado apenas quando salva uma vida.
O essencial é um trabalho em equipa
– Lúcia Artur, enfermeira do Hospital Provincial de Lichinga
Lúcia Artur é enfermeira de nível médio há 19 anos, tem 43 anos de idade. Neste momento, desempenha as funções de chefe da Enfermaria de Medicina II no Hospital Provincial de Lichinga (HPL).
Segundo contou, ela chega muito cedo ao serviço, recebe o trabalho, verifica as ocorrências, visita os doentes, dando prioridade os mais graves e, mediante a prescrição médica, colhe o material dos doentes para análise, para além de mandar outros doentes para o Raio X.
A nossa entrevistada disse haver, obviamente, diferenças entre a profissão do enfermeiro e a do médico, mas prefere sublinhar o trabalho em equipa que, segundo ela, determina os bons resultados que têm sido conseguidos nos hospitais, com benefícios para os doentes.
Lúcia Artur lembra-se de um episódio que diz ter-lhe marcado, pela positiva, durante os seus 19 anos de carreira. Explicou o caso de um paciente em estado de coma, que, devido à sua dedicação e bênçãos de Deus, recuperou a vida, quando todos lhe davam o pior destino. “Este foi um dos meus melhores episódios”, disse Lúcia, para quem os episódios negativos acontecem todos os dias, principalmente quando não conseguimos realizar uma tarefa com sucesso por motivos alheios à nossa vontade.
A nossa fonte reconhece, entretanto, que há muitas melhorias que se verificam na Saúde, mas acredita que algo mais pode ser feito para o bem de uma classe que tanto faz para salvar vidas, muitas vezes, trabalhando em situações extremamente difíceis. Apontando, como exemplo, a elevada carga horária por falta de mais enfermeiros.
“Às vezes, assistimos a mais de 30 doentes. Pedimos que melhorem as condições de trabalho, aumentando o número de pessoal para melhorar a qualidade do trabalho que realizamos debaixo de muito sacrifício”, reclamou a nossa entrevistada, a terminar.
Melhor sintonia entre enfermeiro e médico
Uma outra enfermeira em serviço numa das enfermarias da Pediatria do Hospital Provincial de Lichinga, que pediu para falar na condição de anonimato, queixou-se daquilo que chamou de falta de sincronização entre o enfermeiro e o médico, apontando alguns casos concretos que se passaram consigo em pleno trabalho, num dos distritos da parte sul da província de Niassa.
A nossa entrevista, de aproximadamente 30 anos, contou um episódio negativo que marcou a sua curta carreira, em que teria sido supostamente humilhada em público por parte dum médico.
“Eu estava assistir a uma parturiente, por coincidência esposa de um director distrital, quando chegou o médico de serviço, e, sem verificar a ficha clínica, ordenou que transferíssemos a parturiente para Cuamba. Eu, que tinha visto a ficha clínica da doente, contrapus, aconselhando-o a deixar realizar o parto naquele centro de saúde. Depois de alguma troca de palavras, a senhora acabou dando parto ali mesmo, sem problemas para ela e para o seu bebé”, contou a enfermeira, sugerindo depois que os médicos devem ouvir os elementos da equipa, antes de decidir. Devem ouvir a opinião dos especialistas na área, já que todos trabalham em equipa e lutam pelo mesmo objectivo: garantir a saúde do doente.
Referindo-se ao episódio que mais lhe marcou, pela positiva, a nossa fonte descreveu a história de uma senhora que tinha um parto complicado, parto pélvico (criança que sai através dos pés e não pela cabeça), que deu parto num distrito sem precisar de ser transferida para um hospital de referência.
“Naquele parto, senti que salvei duas pessoas, a mãe e o bebé. Pela primeira vez senti a minha realização, a importância dos ensinamentos que obtive durante a formação e, por conseguinte, me senti uma enfermeira de Saúde Materno Infantil, SMI, de verdade”, contou, apelando, em seguida, a quem de direito para que os enfermeiros sejam valorizados através da criação de melhores condições de vida e trabalho.
A meta é personalizar o atendimento no SNS
Enfermeiros entrevistados pelo domingo em Gaza, por ocasião do Dia 12 de Maio, defendem que o actual rácio de atendimento enfermeiro/paciente é bastante maior facto que contribui para o aumento do volume de trabalho. Consideram que se o rácio fosse reduzido, o atendimento ao doente seria mais personalizado e humanizado e concorreria para a melhoria qualitativa dos serviços prestados no Sistema Nacional de Saúde (SNS).
Marta Fijamo, enfermeira da Maternidade do Hospital Provincial de Xai-Xai, disse que o seu dia-a-dia tem sido agradável, porque encarna a nobreza da sua acção desde à altura em que se formou, adquirindo os princípios básicos e éticos necessários para o atendimento aos doentes.
“Temos feito tudo ao nosso alcance para que o atendimento seja o melhor, apesar de reconhecermos que o país enfrenta outras dificuldades resultantes do seu crescimento”, frisou Marta Fijamo.
Conta que a sua rotina diária consiste na recepção do testemunho do turno anterior por parte dos colegas, na observação dos doentes mais graves a fim de os priorizar no atendimento, assistência aos partos, aplicação de vacinas e atendimento de eventuais casos que ocorrem o pós-aborto.
Refere que a sua missão está bem definida relativamente à do médico, uma vez que o médico prescreve e atende os doentes graves e nós auxiliamos. “O que me marcou negativamente durante o período de exercício da minha profissão foi a falta de muitos materiais de trabalho, logo após ao fim da guerra de desestabilização, mas que o Governo foi superando ao longo do tempo”,recordou-se Marta Fijamo.
Entretanto, Marta Fijamo vê com bastante satisfação as medidas de atendimento gratuito e atempado que foram introduzidas no sector da Saúde, pese embora considere que “precisamos de estímulos e carinho a cada dia que passa, não só financeiramente, mas também através de elogios que nos possam dar maior coragem e alento no exercício da nossa profissão. Precisamos dum carinho especial”
Inês Alexandre Machava, enfermeira do sector de Saúde Materno Infantil (SMI) refere que diariamente atende as mulheres grávidas e os recém-nascidos para além de assistir partos e aplicar vacinas.
Diferencia a sua actividade diária com a do médico. Ao médico, cabe diagnosticar certas patologias e dar o tratamento devido ao paciente. “Eu implemento o tratamento aconselhado pelo médico, seguindo, estritamente, as suas instruções aos doentes”, destacou Inês Alexandre Machava.
Mas também, segundo a nossa entrevistada, existem certas patologias que nós enfermeiros diagnosticamos, cujo tratamento depois é monitorado ao nível mais alto pelos médicos. Inês Machava disse que se sentia orgulhosa por ser enfermeira, por atender a mulher grávida e receber bebés durante o parto. “Essa é a minha grande satisfação”.
Faz votos para que se melhore o salário que o enfermeiro aufere, porque não consegue satisfazer as despesas pessoais e da sua família. “Seria bom que se revisse”, observou Inês Alexandre Machava.
Ezequias Moisés Mula exerce a enfermagem há oito anos, dos quais cinco no sector de cirurgia do Hospital Provincial de Xai-Xai. Considera que a sua rotina diária consiste na medicação do paciente e nos cuidados gerais aos pacientes, ou seja, os que o próprio paciente, por si, não consegue fazer.
Marca a diferença do seu trabalho em relação ao do médico por ele cuidar da enfermagem no geral, enquanto o médico tem uma tarefa mais complexa por incluir a triagem, o diagnóstico, a prescrição da medicação necessária, a terapêutica e a própria medicação. “Portanto, cabe-nos cumprir as recomendações deixadas pelo médico, incluindo os cuidados que são do nosso conhecimento”.
Ezequias Moisés Mula considera negativo o volume de trabalho que o enfermeiro ainda acumula. “Há uma sobrecarga grande, porque o rácio de atendimento está aquém do desejável em Moçambique”, reclama o nosso interlocutor.
Conta Ezequias Moisés Mula que a sua grande satisfação “é o facto de conseguir colocar alegre aquele que no momento de aflição precisa de carinho”. O seu maior desejo é que se aumente o número de enfermeiros para se reduzir a carga sobre eles, de modo a flexibilizar e humanizar cada vez mais o atendimento das pessoas.
Suzana Tamele, enfermeira e responsável pelo sector de medicina masculina no Hospital Provincial de Xai-Xai refere que a sua rotina consiste no atendimento de pacientes internados e no controlo dos colegas do sector. Ela diz que executa o que o médico prescreve e permanece por mais tempo na enfermaria com o paciente.
Suzana Tamele tem 17 anos de carreira e foi formada pelo Instituto de Ciências de Maputo, tendo-lhe marcado pela positiva as distinções que o Hospital de Xai-Xai foi tendo sucessivamente devido a uma melhor prevenção e controlo de infecções.
Acrescenta que “não tenho nenhuma marca negativa profissional, porque sempre exerci o meu trabalho com amor e perfeição”, embora exija que se melhore as condições de trabalho, aumentando-se o pessoal de enfermagem e também os salários.
André Jonas