A província de Inhambane é mundialmente conhecida pelas suas fabulosas praias, pelos jazigos de gás natural de Pande e Temane, e pelo seu imenso palmar. Entretanto, e em surdina, o distrito
de Govuro, que fica no extremo norte desta província, começa a chamar a atenção do empresariado nacional e estrangeiro mercê da reconstrução do regadio de Chimunda. A obra ainda não saiu completamente do papel, mas, já agita Nova Mambone, a sede deste distrito.
Quando se enunciam os distritos da província de Inhambane, Maxixe, cidade de Inhambane, Zavala, Inhassoro, Vilanculo e Jangamo aparecem na linha da frente, por serem estâncias balneares, por possuírem a faceta de entrepostos comerciais, pela vibrante vida cultural ou por ser onde se ocultam imensos jazigos de gás natural.
Funhalouro, Homíne, Morrumbene, Pande, Mabote e Govuro são uma espécie de “primos pobres” mas, o pior epíteto é atribuído a Govuro e sua sede distrital, Nova Mambone, tido por muitos como antro de curandeiros superdotados, daqueles que preparam um banho de drogas e, num simples estalar de dedos, transformam um cidadão miserável num homem afortunado e temido, e vice-versa.
A nossa equipa de Reportagem já tinha escalado este destino em passagens “relâmpago”, entretanto, quis o acaso que para lá regressássemos para nos embrenharmos por esta paragem, que dista a cerca de 860 quilómetros da cidade de Maputo.
Despidos do conforto de viajar em carro particular, seguimos para o terminal da Junta para embarcarmos num autocarro misturados com dezenas de outros moçambicanos anónimos. Tinham-nos assegurado que dali partiríamos por volta das 4 horas e 30 minutos, pelo que arriscamos em meter o pé na estrada numa altura em que as vias estavam povoadas de grupos de homens e mulheres que patrulhavam os seus quarteirões à caça do Grupo-20 e desconfiados de todos os vultos.
A madrugada ainda resistia ao irreversível alvorecer e a Junta já tinha vida própria, com os famosos “gay-gay” a disputarem a escolta de passageiros e bagagens, num movimento intenso e bastante desconfortável para quem, como nós, sabe ler a placa colocada no vidro frontal do autocarro e que indica o destino.
Passados alguns minutos, percebemos que os transportadores daquela praça não ligam à mínima ao cumprimento de horários. A viagem só iniciou as 8 horas e 30 minutos com paragens por todo o que era esquina, alegadamente porque havia lugares por preencher. Quando o autocarro finalmente arrancou, um homem de meia-idade introduziu a conversa sobre o famigerado “Grupo-20”.
Cada um disse o que lhe ia na alma e a conversa mudou de rumo, quando um dos viajantes perguntou aos restantes “como é que os tais do Grupo-20 fazem para violar um homem?” Houve uma trepidante gargalhada e um sonoro “haaaa… não sabes ou estás a gozar?” A conversa foi seguindo o seu rumo e abrangeu a falta de vitórias dos Mambas, a agitação de Muxúngue, conversações Governo-Renamo, enfim, cada um dizia o que lhe apetecia.
Para desconforto geral, aqueles autocarros possuem aparelhos de som com telas nas quais são projectados vídeo-clips de música predominantemente sul-africana, do Lesotho e do Botswana, dos géneros gospel e kwaito, que, de um modo geral, só agrada à tripulação que repete o disco até à exaustão sem poupar no volume.
Novo eldorado
Por volta das 21 horas, o autocarro imobilizou-se em Nova Mambone, vila que, na sua pacatez, já “ressonava”, excepto uma e outra barraca que permanecia aberta para atender duos e trios de jovens animados pelas famosas bebidas secas vendidas em saquetas ou em garrafas plásticas de tampa vermelha.
Na manhã seguinte, depois de nos situarmos, soubemos que o maior projecto de investimento em curso no distrito era a reconstrução do regadio de Chimunda, obra orçada em cerca de 16 milhões de dólares, pelo que não hesitamos em ir apreciar os trabalhos até aqui realizados.
Daniel Adriano, director técnico do Projecto de Irrigação do Vale do Save (PIVASA), aponta que a obra iniciou em meados de Dezembro do ano passado e consiste no reassentamento de 78 famílias, desbravamento de cerca de mil hectares, construção de 42 quilómetros de canais de irrigação, instalação de três electrobombas, armazéns, entre outras infra-estruturas necessárias para a produção.
Conforme testemunhámos no local, 70 por cento dos campos estão desbravados, o que começa a atrair a atenção de farmeiros sul-africanos e zimbabweanos, os quais não arredam o pé do distrito à espera de uma oportunidade para se associarem à causa da produção agrícola em escala comercial.
Aliás, Daniel Adriano refere que a pretensão do Governo é ter o regadio a funcionar em moldes mistos onde os camponeses locais, organizados em associação, vão partilhar a infra-estrutura com agricultores nacionais ou estrangeiros tarimbados no assunto, para que o projecto se torne viável sob ponto de vista económico, de transferência de conhecimentos, tecnologias e de cadeia de valor.
“Pretende-se que nestes campos sejam produzidas culturas alimentares como a batata-reno, milho-miúdo, cebola, alho, entre outras com bom valor comercial e brevemente serão lançados concursos públicos para se apurar farmeiros que deverão operar neste sistema”, afirmou Adriano.
Nelson Matola, fiscal da obra ligado à joint-venture denominada Técnica-NewTec, disse à nossa Reportagem que o regadio de Chimunda deverá estar concluído e pronto para operar até Dezembro do próximo ano e que até ao momento não há atrasos.
“A nossa preocupação reside na necessidade de acelerarmos os trabalhos nesta época seca, porque estamos claros de que a partir de Novembro, teremos problemas com a chuva”, disse Matola, para depois acrescentar que “o projecto compreende três frentes, nomeadamente, a desmatação, construção de edifícios e também a edificação do sistema de captação e sistemas eléctricos”.
Quando este projecto for concluído, o rio Save, que, até ao momento, andava “desempregado”, vai ganhar imensa utilidade, pois deverá irrigar aqueles mil hectares e torná-los rentáveis para a comunidade local e não só. Como forma de prevenir eventuais inundações naqueles campos, o PIVASA está a construir quatro quilómetros de diques em várias secções críticas.
Da palhota para a vivenda
Para dar lugar à construção do regadio, 78 famílias tiveram que ceder espaço e, para não ficarem ao “Deus dará”, o governo provincial orçamentou perto de 120 milhões de meticais para a construção de um bairro de reassentamento que é uma “pêra” naquele meio rural.
O Instituto Nacional de Emprego e Formação Profissional (INEFP) foi chamado a liderar o processo que tem como executores os próprios beneficiários das casas, os quais estão a aprender a construir as suas vivendas que, sublinhe-se, são um mimo. Só de fundação consomem 120 sacos de cimento e várias pilhas de blocos de 20. Segundo o chefe do centro de formação do INEFP em Inhambane, Tristão Guedes, todo aquele material é usado para que a casa resista a eventuais terramotos.
Até ao momento, 15 casas de tipo dois e três estão já “em pé” e vê-se que se trata de casas a sério, pois, levam paredes com blocos de 15, com reboco, sala de visitas, cozinha e casa de banho internas, revestidos de tijoleiras, e instalação eléctrica com célula para que as luzes exteriores acendam ao cair da tarde e se desliguem automaticamente ao amanhecer.
Por outro lado, os beneficiários daquelas casas não vão precisar andar de um lado para outro com baldes e bidões à cata de água, pois, cada casa leva um reservatório e canalização, e a cobertura é capaz de suportar ventos até aos 180 quilómetros por hora, disjuntores nas tomadas, entre outros, conforme nos detalhou Tristão Guedes.
Em termos de critérios para o acesso àquelas casas, as autoridades locais entenderam conceder casas de tipo três a todo aquele que vivia em casa de alvenaria dentro do polígono que agora está a ser transformado em regadio. Os que viviam em palhotas passam a viver em habitações convencionais de tipo dois, o que representa um salto qualitativo sem precedentes naquelas paragens.
Fruto desta metamorfose, a área de Chimunda começa a atrair a atenção de gente local e não só que encaminha expedientes ao governo distrital a pedir terrenos naquela área alegando que pretende se estabelecer por ali, construir infra-estruturas comerciais, entre outros. Há também jovens de vários quadrantes que começam a sondar eventuais oportunidades de emprego.
No que se refere ao plano de urbanização do bairro de reassentamento de Chimunda, Guedes afirma que este foi desenhado com profundo discernimento, pois, prevê de tudo um pouco, a começar por áreas de recreação, unidade sanitária, escolas, área comercial, iluminação pública, espaço habitacional com terrenos de 50/50 metros, entre outros.
Da carroça ao “chapa”
Mas Nova Mambone também vive de comércio, pesca, criação de gado bovino e caprino, exploração florestal e de produção de sal. Azarias Xavier, administrador do distrito de Govuro, conta que o sector florestal local está a atravessar uma crise resultante da excessiva exploração de espécies de valor comercial havida até há poucos anos.
“Esgotamos a florestas com potencial comercial e não houve reposição em tempo útil, pelo que até o número de pedidos de licenças reduziu de 50, do ano passado, para apenas 11 neste ano. Aliás, esta redução também se deve às novas medidas restritivas impostas pelo Ministério da Agricultura para a preservação do pouco que temos”, disse Azarias Xavier.
No que se refere à actividade piscatória, apurámos que, apesar de a sede do distrito possuir energia eléctrica produzida a partir do gás natural de Temane, a maior parte dos operadores deste ramo continua a optar por secar o peixe para exportá-lo para o Malawi e Zâmbia. “Vendem acima de 50 sacos de peixe seco por dia”, sublinhou.
Em termos de rede de transportes, Nova Mambone pode se gabar de possuir uma rede integrada de carroças puxada por bovinos, o vulgar Isuzu KB (caixa aberta), velhíssimos mini-buses e autocarros que fazem a ligação com a cidade de Maputo.
O referido sistema inicia com as carroças que transportam pessoas e bens do interior dos bairros até aos principais mercados locais ou até aos terminais intermédios, onde o passageiro pode embarcar em carrinhas de caixa aberta ou mini-bus para outros destinos relativamente longos.
Em geral, as carroças são dirigidas por crianças que se divertem enquanto fazem o seu negócio que tem cara de rentável, sobretudo observando o número de carretas que se posicionam no respectivo terminal e os vaivéns que realizam ao longo do dia.
O que parece falhar nesta actividade é que poucos condutores deste tipo de transporte frequentam a escola, o que se evidencia pelo facto de não compreenderem mais do que um escasso “Bom dia”. A negociação para um passeio deve ser feita nas línguas locais, o Ndau e Xitswa. De outro modo, o passageiro corre ao risco de “ver navios”, ou melhor, ver bois.
Jorge Rungo
Fotos de Jerónimo Muianga