Texto de Pedro Nacuo
Nascida precisamente um ano depois do Acordo Geral de Paz, assinado em 1992, em Roma, Itália, a Aldeia da Paz, no distrito central de Macomia, em Cabo Delgado, já vê o seu nome posto em causa e, ao lado de todos os moçambicanos, que clamam pela paz, não querem ouvir pronunciadas nenhumas palavras nem ver exibidos quaisquer actos contrários ao bom convívio entre os moçambicanos e dizem não à guerra.
É que a aldeia em si, simboliza o fim dos horríveis 16 anos de guerra fratricida e de destruição do tecido social e económico nacional, tendo dado lugar à celebração que deu razão ao nascimento e baptismo do seu aglomerado populacional, com um nome não só aglutinador, como expressando o que de mais sublime há, a paz.
O Semanáriodomingoesteve na Aldeia da Paz, cerca de 215quilómetros a norte de Pemba, por onde sempre passamos todos os dias, no conjunto das outras aldeias com nomes não menos interessantes, da mesma área administrativa, como Nova Vida e Nova Zambézia e Onumoz. A questão que levávamos é: como nasceu a ideia de fundar a aldeia e baptizá-la com o nome Paz, com que éoficialmente identificada.
Os seus habitantes são provenientes das aldeias mais ou menos vizinhas no interior ocidental do distrito, designadamente, Chicomo, Nantchapa e de Muagamula, bem vizinha, esta separada por apenas dois quilómetros de distância. A Aldeia da Paz nasce aparentemente de forma consensual e não resulta de diferentes desinteligências entre pequenos grupos dos pontos de origem.
“Não viemos de pequenas rixas de ordem étnico ou de clã e de famílias, pese embora o facto de que estávamos fustigados por uma guerra sem sentido, sem pé nem cabeça, entre irmãos. Portanto, ao lado da falta de paz colectiva, é verdade que não faltavam outras guerrinhas entre famílias, que entretanto na eram determinantes. O certo é que depois de alcançado o Acordo Geral de Paz, decidimos, primeiro, timidamente, depois, com a pujança necessária, fundarmos esta aldeia com o nome daquilo que mais almejávamos, a paz”,explica Gabriel Abacar, chefe da aldeia.
Em pequenos grupos, os habitantes de Nguida, Chicomo, Nantchapa e Muagamula procuraram uma nova residência e puseram mãos à obra e a aldeia nasceu.
Na verdade, os primeiros aldeões juntaram-se à volta de um líder originário da aldeia Chicomo, de nome Nikuva, já falecido, que inicialmente alojou-se debaixo duma frondosa árvore, durante um ano, tendo a seguir construído a sua palhota, depois do que, com a ajuda dos seus filhos, acabou edificando a sua própria palhota, sinal que posteriormente foi seguido por outros.
Antes de Nikuva falecer, o seu filho, Bakar Nikuva já era chefe daquela minúscula aldeia, hoje com 800 habitantes, indicado por si, mas passado algum tempo, abdicou da liderança e organizou-se um pleito local que acabou indicando Gomes Anlaue como seu timoneiro com a designação de secretário.
A Aldeia da Paz está a novequilómetros da sede distrital de Macomia, distância que percorrem os aldeões para quaisquer tratamentos hospitalares, porque ali não existe sequer um agente polivalente elementar de saúde.
O mesmo acontece para o atendimento das necessidades básicas de abastecimento em bens de uso e consumo, contando com os flexíveis pequenos comerciantes que desfilaram as suas barracas pela aldeia adentro e estrada principal.
Do ponto de vista estatístico em termos de população em idade de votar não justificou nas últimas eleições a montagem duma mesa de assembleia de voto, pelo que teve que se deslocar à aldeia Nova Vida para o exercício do seu direito.
Em 2014, fundou-se uma escola, que na verdade é anexa à escola completa da aldeia Nova Vida. Severiano Celestino é o único professor, à responsabilidade de quem estão 58 petizes da primeira classe e 48 da segunda classe.
Severiano Celestino vem do Centro de Formação de Professores de Montepuez e é a autoridade máxima em termos intelectuais da Aldeia da Paz. Ele avança planos deconstrução de uma escola independente da Nova Vida, já para o próximo ano lectivo, para acolher os alunos que neste estão na segunda classe, para o que proximamente poderá precisar de mais colegas.
Na verdade, trata-se duma palhota a cair de podre, mas os aldeões defendem-se com o facto de que o edifício pertenceu ao anterior programa de sala anexa e não o reconstroem porque interessa-lhe faze-lo quando for para edificar a escola maior.
Outras possíveis razões
da criação da Aldeia da Paz
Nivako é oclã do secretário da aldeia, Anlima, de Mohamed Andapasse, um outro aldeão que faz parte do conselho de anciãos e Ambasse Sadique, mais um próximo do grupo dirigente é do clã Nkueia. Os três saíram da aldeia de Chicomo para engrossar a aldeia que estava a nascer, a Paz, onde simplesmente se achavam presentes Nikuva e filhos.Originariamente os nikuvas são ékoni, não tendo a ver com as linhagens dos seus novos habitantes.
Os nossos interlocutores pretenderam com essa identificação, com um peso especifico nas comunidades rurais das regiões do norte do pais, para justificar que não houve outras razoes de índole étnico-tribal e de clã que ditaram a sua saída das aldeias anteriores para corporizarem o ideal que era viver numa outra com um nome sugestivo, como a Paz.
“De facto, havíamos combinado a saída de Chicomo, para atendermos o nosso futuro, dado que este lugar para além de nos trazer um relativo sossego, fica à beira da estrada nacional e poderíamos posteriormente ter as condições sociais, escola e hospital e mesmo lojas, segundo viesse a ditar o nosso aumento demográfico”, disseram.
Gabriel Armando é chefe duma família na Aldeia da Paz. Saiu da aldeia de Muagamula, uma distância de doisquilómetros para engrossar esta última e não está ligado em termos de clãs a nenhum dos outros entrevistados, incluindo o secretário.
Armando, que é descendente dos Akulias, avança que a família Nikuva, à volta da qual as pessoas foram se aglutinando é de “bom coração”. “É ver que todos nós viemos aqui por causa de Nikuva, primeiro o próprio, já falecido e a seguir o filho. Mesmo a ideia do nome da aldeia vem do próprio coração da primeira pessoa que cá chegou. É só imaginar que ele (o filho) deixou o poder de secretário, chefe da aldeia, para os outros, quando muito bem podia dizer que a aldeia é dele.E exigiu que houvesse eleições para a sua substituição”.
O nosso interlocutor, por detrás de todos estes elogios à família Nikuva, apesar de consensuais, afinal tinha um segredo, “eu vim casar nesta família, ai se explica que tenha saído sozinho de Muagamula, aqui pertinho. Mas não viria se os Nikuvas fossem manhosos.
Bakar Nikuva, que teoricamente seria o dono da povoação, em substituição do seu progenitor, que foi a primeira pessoa a habitar a actual Aldeia da Paz, não se envaidece com os elogios à sua pessoa e falando ao domingo disse simplesmente que apesar de a ideia ter sido do seu pai, a aldeia é de quem a habita.
Em resposta ao facto de ter deixado livremente o poder, exigindo em seguida que houvesse eleições, BakarNikuva disse que “estava doente por algum tempo, tendo ido à Tanzânia em tratamento. A partir de lá eu senti que a aldeia estava a ficar sem cabeça durante muito tempo e mandei que elegessem um aldeão que fosse mais ou menos íntegro, que não nos envergonhasse. É assim que sobe ao trono o senhor Gomes Anlaue”.
O tratamento VIP que não merecíamos!
Quando marcámos o encontro com a chefia da aldeia, via telefónica, nada indicava que localmente o pedido fosse entendido como partindo de quem podia ser tratado como uma ilustre visita, apesar de termos sido claros quanto aos objectivos da jornada, simplesmente jornalística.
“É que apesar de estarmos à beira da estrada e bem identificados como aldeia, esta é a primeira vez que alguém decide vir conversar connosco, para entender como vivemos e como viemos aqui parar” começa por explicar Gomes Anlaue, chefe da aldeia da Paz.
Acreditaram que a brigada de que se falava era aquela (repórter e motorista emprestado) quando chegou à hora marcada e logo quis falar com os responsáveis da aldeia.“Às vezes uma brigada de pouca gente resolve problemas do que muita gente, porque as pessoas não têm coragem de se expressar”.
Dito e feito, depois das entrevistas, entre as mãos do chefe da aldeia foi-nos exibido um documento, uma espécie de informe para os hóspedes, numa altura em que a nossa reportagem já se sentia satisfeita pelo trabalho feito e preparava-se para se despedir da Aldeia da Paz.
Os bons modos desencorajaram a abdicar do documento, tendo inclusive, e para que não houvesse dúvidas do seu aproveitamento, lido em voz alta o seu conteúdo, para que fosse corrigido em caso de necessidade. Eis na íntegra o documento que havia sido preparado:
“ No dia 14 de Julho de 1993 saímos de Nguida para este lugar. Chegados aqui construímos casas para nós que éramos duas pessoas da mesma família. Quando nasceram muitas casas, demos o nome de Paz à nossa aldeia, porque acabávamos de estar livres da guerra. Fizemos isso porque no tempo de guerra sofríamos muito, não dormíamos nem tínhamos tempo de trabalhar, nem as crianças iam a escola, vivíamos no mato como se fossemos animais” explica o documento.
Mais à frente, no informe propositadamente preparado, diz-se que “a mudança de Nguida para este lugar aconteceu com duas pessoas, depois de um ano apareceram 7, depois do Censo demos o nome Paz, porque estamos livres. A aldeia Paz produz arroz, milho, gergelim e outros produtos. Queremos que o governo nos ajude em energia, água, estamos a pedir tractor para lavrar as nossas machambas”.
Entretanto, os habitantes da Aldeia da Paz, cujas ideias se crê tenham sido vertidas naquele documento, exigem já a legitimação do seu secretário que assume cumulativamente as funções de chefe da mesma.
Na verdade, segundo contaram ao domingo, o secretário daquela aldeia não tem poderes bastantes para decidir sobre assuntos da área, tarefa que cabe ao da aldeia Nova Vida.
“E nós não queremos ter também um secretário anexo como é a nossa escola. Isso traz ultimamente problemas de entendimento na região, apesar de parecer que somos poucos aqui, conhecemos aldeias com poucas pessoas com a “ 5º Congresso”, Adade e a aldeia Onumoz, que têm um secretário reconhecido”, disseram.
O que é paz para os aldeões
Algo escondido nos pareceu persistente na nossa conversa, nomeadamente a razão que leva a que os aldeões, ainda que em número diminuto, pretendem ter o escalão de bairro ou circulo, dai a insistência no reconhecimento das autoridades comunais à semelhança, por exemplo, da aldeia Nova Vida, por sinal, fundada também em celebração do fim da guerra dos 16 anos, mas antes da Aldeia da Paz.
No decurso da nossa estada de duas horas naquela aldeia, fomos sabendo que não se querem subordinar à “Nova Vida” alegadamente porque ali existem “ pessoas d´outro coração”, uma referência implícita a adversários político-partidários.
Contaram que nas últimas eleições “desconfiamos que dos cinco votos da Renamo deste bairro, incluindo a outra aldeia, as pessoas saiam dali mesmo, por isso não nos queremos misturar” disseram ante a nossa perplexão face à tamanha intolerância politica escondida entre os habitantes da Aldeia da Paz.
Pediram para que o repórter não se afligisse com a posição comunal, pois “ nós estamos a defender o nome da nossa aldeia, conquistado depois de muitos sacrifícios e agora há quem quer ultrajar com ideias divisionistas e querem apagar o nome com a guerra”.
Para a Aldeia da Paz, os últimos discursos da ala renamista, personificados no seu líder, Afonso Dhlakama, são uma afronta à si mesma, porque, segundo justificam com uma questão “ se não houver paz como se chamará a nossa aldeia”?Foi nesta aldeia que soubemos que para além daquela há outros aglomerados populacionais com nomes que celebram a paz alcançada há 23 anos, ao longo das estradas de Cabo Delgado.
A “ Vida Nova” é vizinha daquela, tal como Onumoz e já no planalto, no distrito de Mueda, entre as aldeias Nanenda e Namaua, nasceu uma denominada Roma, em alusão à capital italiana que foi palco da assinatura do armistício de 4 de Outubro de 1992.
“Para nós paz é isso que estamos a viver, à beira duma estrada asfaltada, com todas as vantagens que disso resultam, termos alguém na nossa aldeia com casa coberta de chapas de zinco, termos essa escola, comermos sal, telefonar quando queremos e termos dinheiro no telefone e, para completar, falta energia, furos de água, aqui na Aldeia da Paz!
Ninguém deve estragar a paz, disseram em uníssono, a uma pergunta sobre as mensagens em contrário propaladas pelo país, pretensamente porque “o país não se governa com o povo dividido, nem com violência. Estamos assim porque somos unidos como povo moçambicano. Se um dia o país for dividido não fica Moçambique, assim como esta aldeia não se chamará de paz, se essa paz não existir”.
Fotos de Pedro Nacuo
Texto de Pedro Nacuo