O distrito de Chicualacuala, no extremo noroeste de Gaza, está a três passos de dar uma guinada de 180 graus na sua sina de pobreza, graças aos investimentos agora em curso com vista a expurgar as trevas milenares, falta persistente de água e nudez asfáltica. Enquanto estes três itens não se concretizam, a vida segue quase que em sentido anti-horário. Só pulsa às quintas e domingos, quando o comboio chega. Mal este “vira as costas”, tudo volta a ser como era dantes. Sem ritmo. Devagar, devagarinho.
Chicualacuala é daqueles lugares a que os cidadãos de Cabo Verde chamariam de “Terra Longe”, porque a rodovia que deveria permitir a ligação com a Estrada Nacional Número Um (EN1), via Chókwè e Mabalane, nunca passou de picada, daquelas que só oferecem turbulência na época seca, e uma versão sofrida de aventura, na época chuvosa.
É verdade que decorrem trabalhos tendentes a asfaltar aquele troço que, apesar de não estarem concluídos, galvanizam a vontade geral de um dia poder-se viajar comodamente, em transporte feito para levar gente e não naqueles camiões que carregam bovinos, nos quais o ser humano vai de favor, porque a prioridade é para a boiada.
Aliás, apesar do avanço das obras, muitos ainda continuam incrédulos, porque os empreiteiros parecem se dar por vencidos em relação a uns tenebrosos 50 quilómetros que separam Mabalane de Combomune, local que, quando chove, torna impossível a passagem dos mais hábeis condutores do mundo. Ali, até tractores derrapam e se atolam. As marcas do pesadelo vivido na última época chuvosa continuam fossilizadas no chão até hoje, como se fossem marcas de luta de dinossauros.
Para chegar à sede do distrito de Chicualacuala, a vila Eduardo Mondlane, de comboio é outra batalha. Precisa ter estofo e esquecer que existem horas, minutos e segundos. Por este meio de transporte, a viagem eleva-se à categoria de loucura. Só para se ter uma ideia, a locomotiva parte de Maputo por volta das 13 horas de quarta-feira e só chega àquele destino às seis horas da manhã do dia seguinte. Pelo caminho há que enfrentar um frio de rachar, entre outros.
Ao sábado, idem. O comboio retoma a viagem e só chega lá ao domingo de manhã e é graças a este movimento ferroviário das quintas e domingos que a vila sede deste distrito assiste a um movimento desusado de pessoas e bens, o que permite que a população local adquira produtos de toda a espécie para o seu consumo numa espécie de trocas comerciais à moda antiga.
O que torna este negócio animado é que há um comboio que faz o mesmo movimento a partir do interior do Zimbabwe até à fronteira de Chicualacuala e traz comerciantes que procuram bens “moçambicanos”, com primazia para a “xicalamidade” (roupa usada).
Segundo os residentes locais, nesta época seca e fria, os negociantes zimbabweanos procuram roupa de inverno para vestirem ou revender nos mercados de Bulawayo e Harare. Dada a carência deste tipo de artigos e ao frio que faz por lá, não surpreende o facto de aqueles esgotarem o stock disponível no mercado local.
Hotel Estação
Depois de mais de mais de 10 horas de viagem, o corpo e a mente começam a entrar em desacordo e o cansaço a vencer a todos por goleada de tipo Alemanha-Portugal, no Mundial em curso. Já fartos do som do motor, alcançamos na vila de Mapai, que dista uns 80 quilómetros da sede de Chicualacuala. Uff! Espreguiçamo-nos ao sair do carro sob o olhar dos transeuntes. Tudo o que queríamos era desentorpecer os músculos.
Felizmente, a partir dali, a estrada é uma pêra. Asfaltada com mestria e convenientemente sinalizada, mas, como não há bela sem senão, os construtores se esqueceram de colocar placas que indicam a distância que sobra para a vila Eduardo Mondlane.
Foram jovens locais que nos disseram que tínhamos pela frente mais 80 quilómetros (km) divididos em duas partes. Quarenta quilómetros até Chicualacuala B e mais 40 km até ao nosso destino, Chicualacuala A, o mesmo que vila Eduardo Mondlane.
Enquanto recobrávamos as energias com uma ginástica improvisada, olhamos para o céu e vimos como a densa escuridão resultante da falta de energia eléctrica e do luar ajuda a ver um conglomerado de estrelas no céu. Dá para uma aula de geografia, no capítulo de constelações, astros e similares.
Alcançamos a vila Eduardo Mondlane perto das 20 horas e fomos imediatamente para o edifício mais imponente que nos apareceu pela frente. Parecia uma catedral, mas, na verdade, era a estação dos Caminhos-de-Ferro. Belíssima obra. O guarda, de nome Salomão, recebeu-nos com simpatia e indicou que há quartos livres no edifício, água quente (a balde) e que querendo, poderíamos jantar por ali.
Porque aprendemos na infância que “não se fazem compras na primeira banca” demos uma volta rápida pela vila à procura de uma segunda opção, porém, para o nosso desgosto, o atendimento foi tão precário, apesar de untado de sorrisos da recepcionista, pelo que regressamos à primeira forma.
Naquele Hotel Estação, de seis quartos e muitos gabinetes, todos os quartos levam duas camas. Ao meio da noite, quando o sono está em velocidade de cruzeiro, há estrondos vindos da linha férrea. Chega um comboio, parte outro, as carruagens chocam entre si, o maquinista apita, enfim. É mais estação ferroviária que hotel.
Ao amanhecer, procuramos pelo gestor daquela estância turística, o zimbabweano Dereck, que se dispôs a falar sem a menor burocracia. Ele contou que toda a economia de Chicualacuala gira em torno do comboio. “Sem o comboio não há dinheiro por aqui”, afirmou categórico.
Energia aos “montinhos”
Como em qualquer parte do mundo onde se sofre, na sede de Chicualacuala, há energia eléctrica, mas, não é para quem quer. A corrente é produzida via gerador a diesel e fornecida pelos Caminhos-de-Ferro de Moçambique aos seus funcionários e a algumas instituições do Estado.
Porque se trata de um jeito que os CFM fazem, sob imensos custos, o racionamento é inevitável e obedece ao horário das 10 horas da manhã até as 14 horas da tarde e das 18 até as 23 horas, lembrando que não é para todos, incluindo os mais ricos. É só para trabalhadores dos Caminhos-de-Ferro e algumas instituições públicas. Os restantes residentes da vila viram-se como podem com candeeiros a petróleo, painéis solares, geradores, entre outras fontes.
Felizmente, este quadro tem dias contados, pois, decorrem trabalhos de construção de uma subestação em Mapai que vai fornecer energia da rede nacional a toda a zona norte da província de Gaza, com incidência para Mapai, vila Eduardo Mondlane, Pafuri e para as sedes dos distritos de Massangena e Chigubo (Dindiza).
Segundo o representante da empresa que está a desenvolver o projecto, Carlos Beltrão, os trabalhos estão a ser realizados “a todo o gás” e poderão ser concluídos em finais de Setembro e princípios de Outubro deste ano.
Conforme testemunhámos em Mapai, todos os equipamentos necessários para levar a corrente eléctrica ao Norte de Gaza já se encontram no terreno e só não se trabalha à noite por falta de condições. Mas, vontade é o que não falta, porque o governador da província, Raimundo Diomba, a administradora do distrito de Chicualacuala, Terezinha Chemane, entre outros membros, estão a fazer uma espécie de “marcação homem a homem” ao empreiteiro para que este cumpra com os prazos e, no final, não venha com estórias.
Com a construção da estrada a andar mais ou menos bem e a subestação e as linhas de energia a saírem aos poucos do papel, Teresinha Chemane começa a se empenhar numa terceira frente que lhe tira sono que é o abastecimento de água. Chicualacuala é um dos distritos cobertos pelo manto da seca cíclica, pelo que água por ali é um bem preciosíssimo.
Este distrito é habitado por cerca de 38 mil pessoas e só tem 81 fontes de água, das quais 20 não funcionam e, como se isso fosse pouco, três estão assoreadas. Resultado disso é aquela romaria de mulheres à cata de água nesta e naquela direcção, cada uma com o rosto mais revoltado que a da outra.
Pior do que faltar água é tê-la, mas tão salubre que não dá para fazer um chá ou para um banho com o sabonete a espumar normalmente. Para o estor do Hotel Estação, o zimbabweano Dereck, a falta de água faz com que não possa oferecer banhos tranquilos aos seus clientes. “Cada um trafega pelas instalações com um balde e isso não é confortável. Por isso é que ainda não publicitamos os nossos serviços, porque não temos a qualidade que desejamos”, disse.
Salário? Só a 400 quilómetros
Se a vida dependesse do preço da carne, os residentes de Chicualacuala estão feitos. Por lá, o quilograma de carne de vaca custa 100 meticais e a da carne de porco custa 135 meticais. Por causa disso, assa-se e come-se carne nos lugares mais inesperados, incluindo oficinas-auto e bancas de mercado.
Se por esse lado a vida é boa, pelo lado dos salários a situação é bem amarga para os funcionários públicos, cujos salários só podem ser auferidos via banco. O último balcão disponível se localiza na sede do distrito de Chókwè, que dista cerca de 400 quilómetros dali.
Para temperar a amargura da viagem por uma estrada com os seus percalços ou de comboio que só aparece às quintas e domingos, como já cantou Matias Damásio, em “Eu sou a outra”, os balcões de Chókwè acolhem a todos os professores, enfermeiros, polícias, comerciantes, administrativos, enfim, de todos os distritos daquela zona, nomeadamente, do próprio Chókwè, Mabalane, Chigubo, Massangena e Chicualacuala. Um inferno.
Para colmatar este autêntico drama, alguns bancos já começam a se movimentar no terreno com o objectivo de ir minorando o sofrimento através da montagem de pontos de pagamento via cartão, vulgo POS, em alguns estabelecimentos comerciais mais movimentados.
É que, depois de enfrentar uma penosa viagem de carro ou de comboio, chegar e deparar-se com uma profunda escuridão, lutar para ter água e depois não ter como levantar o salário, muitos jovens escalados para trabalhar neste distrito como funcionários públicos ou agentes do Estado, só pensam numa coisa. Ir para casa na primeira oportunidade. E vão mesmo!
Jorge Rungo
jrungo@gmail.com
Fotos de César Bila