É um dos cromos habitacionais da cidade de Maputo e, embora tenha mudado de denominação duas vezes, os adultos na casa dos 50, 60, 70 anos ainda usam o nome com que foi baptizado: bairro Indígena. Cumpre-se a profecia: o hábito não faz o monge.
Foi bairro de infância de Ricardo Chibanga, primeiro torreiro negro em Moçambique, de escritores como Aldino Muianga, Marcelo Panguana e Juvenal Bucuane e do actual Primeiro-ministro moçambicano, Carlos Agostinho do Rosário. Gente da terra. domingo esteve lá.
Tudo começou em 1938,junto da actual avenida Angola, entre os bairros do Alto Maé e Aeroporto, quando foram construídas casas de alvenaria cobertas de zinco. Metade era do tipo dois (t2) e a outra do tipo um (t1).
A iniciativa da construção do bairro foi da administração colonial portuguesae destinava-se aos trabalhadores da Câmara Municipal, Caminhos de Ferro de Moçambique, hospital e pouco mais. Porém, tudo começava por um requerimento no qual o funcionário manifestava vontade em morar naquele bairro, além de que tinha de fornecer toda a informação a seu respeito. Semanas depois, chegava a resposta e caso fosse positiva era-lhe indicada a habitação.
Segundo apurámos, a distribuição das casas era feita consoante o estado civil do requerente. Os solteiros recebiam uma casa tipo 1. Habitação do tipo 2 era para casados e mensalmente era-lhes cobrada uma taxa que variava entre 50 e 70 escudos.
O bairro Indígena (actual bairro da Munhuana) foi construído num vale húmido. O resultado dessa opção foi, por vezes, dramático. Em 1966, as casas foram engolidas por inundações, tendo obrigado os residentes a abandonar aquele recanto.
Fernando Gueba, líder comunitário do bairro da Munhuana desde 2007, viveu aquele episódio na pele e recorda-se de tudo.
“Aquele acontecimento marcou este bairro. Tudo aconteceu no dia 8 de Janeiro. Do nada, as inundações engoliram tudo o que tínhamos. Ficámos sem tecto e tivemos de ser todos evacuados. Os barcos militares foram a nossa salvação…”, disse.
Na verdade, não tinha sido somente chuva a causar tamanha tristeza. Aquelas águas vinham de bairros circunvizinhos e como o Indígena era (é) propenso a inundações e na época não tinha valas de drenagem a água estagnou e formou um longo e profundo lago que tudo tapou.
Para fugir daquele lençol de água, os residentes da Munhuana tiveram de se abrigar em casas de irmãos, primos, avós, compadres. Semanas depois, o cenário era outro: a água secou e Munhuana, finalmente, disse… adeus ao pesadelo.
VALAS DE
DRENAGEM
Américo da Costa, 58 anos de idade, residente no bairro desde os seis (6) anos, recordou que sofreu com as cheias da década de 1960 e, por conta disso, a construção de valas de drenagem em algumas ruas do bairro como Limpopo, Vila Luísa e Manhiça foi uma grande “festa”. No entanto, lamenta o facto de a limpeza não ser constante e algumas pessoas depositarem lixo que, misturado com água estagnada, liberta um cheiro nauseabundo quase irrespirável.
“Só vemos preocupação de limpar as valas quando querem realizar campanhas ou quando há previsão de grandes chuvas”, disse.
Nos primeiros anos, o bairro esteve sob responsabilidade da Câmara Municipal e havia uma inspecção periódica para aferir o modo de utilização das habitações pelos seus ocupantes. Aliás, isso mesmo foi-nos testemunhado pela vovó Gueba.
“Munhuana era um bairro destacável e bonito. Semestralmente as casas eram pintadas e havia um estaleiro que delegava trabalhadores para repararem as casas e pintá-las. Infelizmente, tudo isso foi com o vento e com o tempo”, disse.
Anos depois, a Junta dos Bairros Populares passou a ser responsável pelo bairro da Munhuana. De acordo com Noel Langa, exímio escultor e pintor moçambicano, foi a Junta dos Bairros Populares que decidiu construir em altura.
“O prédio de quatro andares que todos conhecem foi a Junta que construiu. Era uma forma de ter muitas casas no mesmo espaço. Este tipo de construção foi também aplicado no bairro da Malhangalene”, recordou.
CAIR NO ESQUECIMENTO
Américo da Costa não tem muita expectativa em relação ao futuro do seu bairro. “Muitas vezes sinto que caímos no esquecimento e nada evoluiu por aqui. O único grande acontecimento, que eu me lembre, foi a construção das valas de drenagem e nada mais”.
Adiante lamentou o facto de a antiga Escola São Miguel, na qual muitos da sua geração estudaram, estar actualmente subaproveitada. “Esta escola seria muito útil às crianças que ainda hoje estudam debaixo das árvores. Além de estar bem localizada e ser de fácil acesso ali estudaram grandes figuras moçambicanas como Juvenal Bucuane, Carlos Agostinho do Rosário, entre outros.”
Américo da Costa, que se sente orgulhoso por pertencer àquele espaço, avança que as empresas que ali operam deviam fazer serviços sociais para ajudar o seu desenvolvimento.
No que toca à segurança, as coisas ainda correm de feição. “Estamos numa situação diferente da que é reportada noutros bairros. Aqui quem rouba são os nossos ‛filhos’, mandatados por terceiros. Mas não é nada por aí além”.
DE INDÍGENA
A MUNHUANA
Como referenciámos acima, o nome indígena proveio do facto de os portugueses terem erguido aquele bairro só para nacionais de raça negra trabalhadores, sobretudo, da câmara municipal. Porém, o tempo correu, chegou a Independência Nacional e o bairro mudou de nome. Passou a designar-se bairro Popular da Munhuana. Mas porque se entendeu que o nome era demasiado cumprido, foi retirada a palavra Popular e ficou apenas Munhuana.
Segundo Noel Langa, residente naquele bairro desde 1954, a nova designação não foi por mero acaso. Deveu-se ao facto de a areia do bairro ser salgada e sempre que se abria um furo deparar-se com água salobre.
“Esta realidade continua até os dias de hoje. Nas primeiras horas do dia é possível ver sal no chão”.
Noel Langa defende que o bairro devia continuar a designar-se Indígena porque aquele nome carrega toda a história do lugar. Para ajudar a preservar toda essa herança decidiu erguer um atelier.
Após a Independência Nacional, o bairro ficou, uma vez mais, às moscas quando se registou o êxodo dos que ali residiam para os prédios da zona cimento que tinham sido abandonados pelos portugueses, corria o ano de 1977. Noel Langa também foi nessa onda, mas regressou anos depois porque o chamamento da sua Munhuana foi mais forte.
“Posteriormente decidi criar o Centro Cultural Arco-Íris, anteriormente galeria, como forma de mostrar o amor que tenho por este bairro. Tenho trabalhado com crianças e adultos até 50 anos”, frisou mestre Noel.
MUDANÇAS
A arquitectura do bairro sofreu alterações. Os muros dos quintais já não são uniformes e o ronga não é mais a língua dominante. Hoje na atmosfera chocalham todas as línguas do país ou quase. Onde anteriormente funcionou o posto de saúde nasceu um centro infantil. No dispensário, onde se prestavam os primeiros socorros às mulheres pós-parto, funciona o comité do bairro. Da lavandaria nem sombras. Imponente, ainda que com pintura carcomida pelo tempo, resiste a esquadra, a Paróquia São Joaquim e o Centro de Formação de Professores da Munhuana.
“Tínhamos um jardim muito belo onde as pessoas descansavam, pena que tenha sido engolido pelas cheias de 1966 e nunca mais recuperámos aquela bela paisagem. Agora funciona um estaleiro”, recordou, por sua vez, Fernando Gueza.
O bairro Indígena era referência quando o assunto fosse “uputso” – bebida tradicional feita com base em farelo de milho.
Texto de Maria de Lurdes Cossa
malu.cossa@sn.co.mz