Cerca de vinte mil moçambicanos vivem no reino da Suazilândia, porém, a maior parte destes não possui documentos de identificação e são obrigados a viver com a trouxa na mão porque, quando a polícia local entende, faz rusgas e prende-os. A própria comunidade suazi também não ajuda, pois, até por ciúmes e inveja vai à esquadra apontar que o moçambicano “X” e outro “Y” estuprou, roubou, burlou, enfim.
O reino da Suazilândia já foi um eldorado para milhares de moçambicanos que por lá encontraram refúgio nos tempos de guerra e fome que Moçambique experimentou logo a seguir à independência, na famosa década 80.
A economia deste pequeno, e diga-se com todas as letras, belo país, era vibrante e a paz nunca foi beliscada ou tema de debate. Por estas e por muitas outras razões, bastava que o emigrante tivesse uma arte na mão para amealhar uns bons randes ou emalanguenis (moeda local) e, por essa via, sustentava aos seus que ficaram no país natal.
Nos dias que correm, a corrida para a Suazilândia cessou e quem por cá ficou faz as contas à vida porque consegue fazer a vida, mas experimenta o sabor amargo de viver num país onde a polícia está permanentemente de olho aberto e, quando entende, se põe a fazer rusgas que culminam, invariavelmente, com detenções em massa.
Aliás, alguns agentes fazem questão de se posicionar em pontos estratégicos, meio disfarçados, para ver quem atravessa a estrada “à moda do cabrito”. Só isso é suficiente para ir dar à esquadra e, senão tiver documentos e dinheiro para pagar a multa na hora, será necessário enfrentar uma cela qualquer. “Aqui há lei”, dizem os próprios nativos, e com bastante orgulho.
A nossa Reportagem percorreu as ruas e avenidas da capital Mbabane, foi à capital económica, Manzini, e vila ferroviária de Matsapa, onde ouviu estórias de vida e alguns moçambicanos que, mesmo estando a desenvolver actividades económicas que o governo local reconhece que são fundamentais, continuam impedidos de ter acesso a vistos de residência de longo termo.
Paulo Tivane, por exemplo, é um empresário bem-sucedido na área de mecânica. Tem uma oficina denominada PT-Auto, que é bastante requisitada em Matsapa, inclusive por empresas de grande porte, possui uma loja de venda de peças, um bar e a esposa gere uma lanchonete. Autêntico complexo que atrai dinheiro por todos os cantos.
Entretanto, com toda a experiência de vida e de trabalho que possui, do alto dos seus 54 anos, 33 dos quais vividos naquele país, continua obrigado a ter que se apresentar às autoridades locais, de dois em dois anos para renovar o seu visto de trabalho e residência.
Note-se que o dono da PT-Auto emprega 15 cidadãos, entre moçambicanos e suazis e um número não especificado de trabalhadores sazonais mas, mal o abordamos sobre como lhe corre a vida por aqui, levantou o problema da papelada de identificação.
“O governo daqui, por reconhecer o meu trabalho, até me pediu para mudar a nacionalidade, mas recusei. Por causa disso, sou sujeito a me apresentar às autoridades de emigração para renovar o visto de dois em dois anos”, conta.
Entre muitos outros moçambicanos bem-sucedidos que encontramos por cá, Naftal Labguela que é um “Ás” no que se refere à montagem e reparação de antenas parabólicas e sinal de televisão. Segundo conta, foi graças a esse negócio que conheceu as entranhas da Suazilândia. Prestou serviços para o governo e privados de todo o país e já empregou 16 jovens.
“O grande problema por aqui é a falta e documentos e isso faz com que muitos se vejam forçados a mudar a nacionalidade. Alguns agentes da polícia, militares e funcionários públicos daqui são moçambicanos e vivem fingindo que não saber falar português para não serem descobertos”, relatou.
Paulo Bambo é uma ferra quando o assunto é resolver problemas eléctricos e electrónicos de viaturas. Até usa um instrumento similar o estetoscópio dos médicos para descobrir ruídos nos motores dos carros. Reside neste país desde 1991 e assume a presidência da associação dos moçambicanos residentes em Manzini. Sem papas na língua diz alto e em bom som que “há discriminação aqui”.
SUAZIS TAMBÉM QUEREM VISTOS
Porque o tema aflige a quase todos os moçambicanos que por cá se encontram, fomos à Embaixada de Moçambique onde o solícito embaixador Luís Silva indicou que a falta de documentação de base, nomeadamente Registo de Nascimento, Cédula Pessoal ou Bilhete de Identidade é que torna a situação dos cerca de 20 mil moçambicanos aqui residentes bastante difícil.
“O que começa a tornar difícil o relacionamento entre os moçambicanos e suazis é que estes últimos já despertaram para a realidade e começam a se envolver no negócio informal, coisa que antes desprezavam. Essa disputa aguça as rivalidades”, disse.
Segundo o embaixador, as dificuldades de acesso ao visto de trabalho e residência já estão a ser discutidas ao nível da Comissão Mista de Trabalho que envolve altos quadros dos ministérios do Interior dos dois países, ao nível das direcções de Migração e de Identificação Civil.
“O que nos anima é que já não são apenas os moçambicanos que procuram por este tipo de vistos, mas também os suazis querem viver e trabalhar em Moçambique, sobretudo na área do açúcar porque possuem muita experiência nesta matéria e começa a haver um declínio na produção local”, revelou.
Entretanto, e ao contrário das autoridades suazis, Moçambique não coloca barreiras para além do que está estatuído no que tange ao acesso ao visto de trabalho e residência. “Se o requerente respeita a todos os requisitos não temos alternativa. Damos o visto”, disse o embaixador.
Conforme observamos, o governo suazi coloca obstáculos para a concessão de vistos porque entende que quem quer viver neste país deve desenvolver alguma actividade que nenhum nativo seja capaz de realizar. Assim, quem alega que quer vender fruta, ser mecânico, carpinteiro, serralheiro, motorista, vender roupa, entre outros o género, nunca é autorizado, porque isso, qualquer um pode fazer.
“No primeiro encontro que tivemos chegamos à conclusão de que era preciso ir buscar a experiência que existe entre a África do Sul e o Zimbabwe e, tudo indica que na primeira quinzena de Fevereiro iremos reunir e buscar consensos porque esta matéria aflige a nossa comunidade e começa a afligir a eles”, frisou.
No que se refere ao tratamento que a polícia local dá aos moçambicanos, Luís Silva explicou que nos últimos tempos há um abrandamento da pressão sobre os indocumentados pois, antes prendiam e deportavam. “Agora são mais tolerantes”, admite.
Um dos momentos tidos como difícil para quem está neste país de forma ilegal é quando o Rei pretende fazer visitas às comunidades. Segundo nos foi relatado, aí a polícia vem à rua e recolhe a todos os que não tem a situação regularizada.
PRESOS NO ESTRANGEIRO
Mas, não são só os indocumentados que experimentam o sabor amargo de “viver de favor”. Segundo o embaixador Luís Silva há muitos moçambicanos que enfrentam a barra do tribunal por serem acusados de crimes de diversa índole e, o que mais preocupa é o aumento queixas de estupro.
“Pensamos que deve haver má-fé por parte da comunidade acolhedora que descobriu nisto uma oportunidade de se livrar de quem não gostam. Por outro lado, eles sabem que este tipo de crime é facilmente aceite pelas autoridades policiais que punem de forma severa, com penas que vão dos 17 a 20 anos”, disse.
Com efeito, a maior parte dos processos que estão a ser tramitados nas estâncias policiais e judiciais, que envolvem moçambicanos, estão relacionados com estupros em situações em que o suposto ofensor finca-pé afirmando que havia um relacionamento amoroso e que todos os contactos sexuais eram consentidos. Mas, ao que percebemos, a investigação é superficial e sempre culmina com a condenação do moçambicano (legal ou ilegal).
A segunda categoria de moçambicanos que estão a contas com a polícia suazi tem a ver com os que se envolvem com o negócio de droga que, igualmente, é severamente punida, mas que nem por isso abranda. Aliás, nas cercanias de Matsapa e Manzini, ao final do dia, há postos de venda de canábis sativa (suruma), em pela via pública. É só estacionar o carro e adquirir.
Também testemunhamos que na parte Norte deste país, existem pontos de cultivo e processamento que a polícia local, não se atreve a meter o pé. As rusgas que são feitas naquelas áreas montanhosas só são possíveis com a colaboração de forças policiais e militares da África do Sul.
“Estamos a trabalhar com o governo suazi para vermos como podemos resolver, de forma rápida, o problema da documentação, mas o que dificulta é que muitos não possuem documentos e não tem como obtê-los porque os seus registos desapareceram no tempo das cheias e da guerra que tivemos no nosso país”, frisou.
Aliás, equipas da Direcção de Identificação Civil tem estado a proceder a registos dos moçambicanos aqui residentes, mas os números conseguidos são bastante pequenos. Segundo apuramos, dificilmente chegam a 200 pessoas, porque a maior parte não tem nada que diz que é moçambicano.