O consórcio indiano Technofab/Gamon venceu o concurso público internacional há cerca de dois anos para construir um sistema de captação, tratamento e bombagem de água para a cidade de
Nacala, em Nampula. A obra estava estimada em 30 milhões de dólares. No lugar de executar a empreitada, aquela companhia limitou-se a “meter os pés pelas mãos” e não conseguiu tirar o projecto do papel. De tão intricado, o enredo até parece de cinema pois, no final, de obra nem pó. A firma perdeu o contrato, somou prejuízos milionários, foi multada e proibida de abandonar o país sem resolver os seus imensos imbróglios.
O governo moçambicano, pelo punho do Millenium Challenge Account (MCA), o mesmo que Conta dos Desafios do Milénio, recebeu há cerca de cinco anos um financiamento do governo dos Estados Unidos da América (EUA), orçado em 506 milhões de dólares, para materializar várias iniciativas de desenvolvimento no país.
Entre tais iniciativas constava a construção de um sistema de abastecimento de água à cidade de Nacala que se conectaria à barragem de Nacala, também em reconstrução. No final, os residentes daquela região da província de Nampula, passariam a dispor de água como nunca tinham tido antes.
Obedecendo às regras definidas pelo Millenium Challenge Corporation (MCC), que é o braço financeiro do governo dos EUA, o MCA lançou o concurso público internacional e o vencedor foi o consórcio indiano Technofab/Gamon, tido como “expert” na matéria.
Como prova de musculatura requerida para a construção do referido sistema em dois tempos, representantes daquela sociedade anexaram uma lista de supostas obras executadas um pouco por todo o mundo. Perante curriculum tão recheado e brilhante, os governos de Moçambique e EUA deram o “OK”.
Sem “pestanejar”, o governo moçambicano assinou o contrato com aquela empresa indiana e ambos brindaram ao sucesso da obra e ao cumprimento dos prazos. Pouco depois, isto há cerca de dois anos, o MCA concedeu três milhões de dólares (perto de nove milhões de meticais) à Technofab/Gamon para esta começar a mobilizar materiais e equipamentos para dar vida ao projecto.
Animados não se sabe porquê, os gestores daquela empresa entenderam ir a um banco lá da Índia pedir emprestado 15 milhões de dólares para acelerarem a mobilização de tudo o que seria necessário. Tendo presente o contrato de 30 milhões de dólares como garantia, os bancos indianos confiaram e cederam o montante solicitado.
Dados em nosso poder indicam que a um dado momento, esta firma terá sido tomada como exemplo de predisposição para trabalhar, dada a abnegação com que se movimentava no terreno. É que outros empreiteiros que tinham vencido os concursos para construir estradas, reabilitar a barragem de Nacala, construir fontes de água, entre outros, pareciam fazer a sua parte “à part-time”.
Os construtores da Technofab/Gamon montaram os seus estaleiros num abrir e fechar de olhos, contrataram a mão-de-obra necessária, importaram e descarregaram a tubagem, ferragem e acessórios nos diferentes pontos por onde o sistema seria erguido.
Os materiais que seriam montados na fase de acabamentos chegaram há poucos meses e estão acondicionados no porto de Nacala, havendo outros que estão em navios. Até aqui, maravilha. Aquele consórcio merecia sinceras palmadas das costas.
Pés pelas mãos
O que a Technofab/Gamon devia fazer a troco dos 30 milhões de dólares, para além de importar equipamentos e materiais, era construir uma estação de tratamento de água com 10 filtros de tratamento mas, só iniciou a construção de oito fundações (lajes) para tais filtros.
Também devia montar 23 quilómetros de tubagem, construir um depósito elevado do qual a água escorreria por gravidade para a baixa da cidade de Nacala e para os bairros de expansão. Também devia construir um depósito de oito mil metros cúbicos, reabilitar o depósito de oito mil metros cúbicos localizado em Nacala e construir uma torre com tanque de 200 metros cúbicos para aumentar o raio de abastecimento por gravidade.
Porém, ninguém imaginou que o consórcio Technofab/Gamon pretendia reunir todo o material no terreno e depois procurar um subempreiteiro, acto que não correu como se esperava e gerou o reboliço no qual aquela empresa se viu mergulhada.
Os pesquisadores de subempreiteiros da Technofab/Gamon calcorrearam o país de lés-a-lés e, nicles. Não conseguiram encontrar nenhuma empresa nacional com perícia ou disposição para executar aquela obra por menos de 12 milhões de dólares, que era a margem que o consórcio tinha por receber do MCA. Tentativas feitas extramuros também redundaram em fracasso. “Eles avaliaram mal as condições do mercado”, refere fonte do MCA.
Pior do que isso é que uma das cláusulas do contrato da empreitada indica claramente que a obra deve ser executada até 22 de Setembro próximo, data em que os desembolsos do MCA expiram. “Neste quesito, o MCC é vigoroso. Não dá nem mais um dia”, afirmam.
Sem alternativas e completamente baralhado, o consórcio ensaiou iniciar a construção das fundações e, em cerca de dois anos, a obra caminhou em milimétricos 20 por cento. Consta que o executivo do MCA, encabeçado por Paulo Fumane, terá feito diligências no sentido de mobilizar os gestores da empresa a acelerarem a obra e, nada. O projecto teimava em permanecer no papel, embora a empresa reiterasse com ar sério: “fiquem calmos. Nós vamos construir isto”.
Perante este quadro, o MCA entregou o caso ao ministro da Planificação e Desenvolvimento, Aiuba Cuereneia, o qual também conversou com aqueles construtores e ouviu a mesma resposta. “Calma, Excelência. Nós vamos fazer isto. Temos experiência”.
Porque a obra não andava e nem desandava, o governo moçambicano desfez o contrato e agora deve fazer tudo de novo, ou seja, deve lançar um novo concurso público internacional em Outubro próximo, apurar um vencedor e realizar uma penosa missão de avaliação dos materiais importados pela Technofab/Gamon para ver se podem ser usados pela nova empresa.
Contas muito malparadas
Mas, a estória da Technofab/Gamon não encerra com a extinção do contrato. Antes pelo contrário. Agora inicia uma fase que deverá ser a mais sinuosa porque esta empresa recebeu a pena máxima em termos de multas previstas pelo MCC-MCA.
Fonte daquela empresa aproximou-se da nossa equipa de Reportagem e, com voz embargada pelo desespero, revelou que a multa é de 300 mil dólares por dia de atraso ao que se deve acrescer a devolução dos 15 milhões de dólares e respectivos juros ao banco lá da Índia, entre outros compromissos financeiros locais e exteriores.
O enredo desta tragicomédia com contornos cinematográficos à Bollywood, versão indiana do centro cinematográfico norte-americano (Hollywood), também inclui cerca de 77 homens que foram contratados para construir aquele sistema com cerca de 30 quilómetros de extensão.
Durante a nossa visita aos estaleiros daquela empresa, mais de uma dezena de trabalhadores acercaram-se da nossa equipa de Reportagem confiantes de que poderíamos ser representantes de algum órgão decisor nacional. Dissemos que éramos jornalistas e vimos os seus rostos amuarem. “Estamos mal. A obra não andou e agora estamos a regressar ao desemprego”, disse um jovem que se tinha posicionado mesmo ao nosso lado.
Naquele instante, percebemos que aquela massa laborar tinha profundas dúvidas sobre o seu futuro, pelo que acenamos a um funcionário do MCA a quem colocamos a pergunta óbvia. “E estes homens, como ficam?”
Aquele funcionário, que assistia à implementação daquele projecto específico, disse com relativa segurança que “a Technofab/Gamon foi proibida de abandonar o país sem resolver todos os seus problemas e o Governo já accionou as medidas necessárias para que eles não fujam”.
Barragem pronta mas,
sem ligação ao consumidor
Se no começo os gestores do MCA torciam o nariz ao ver outros empreiteiros a começarem por construir requintados centros sociais, antes de edificarem os estaleiros, hoje o discurso é outro pois, 90 por cento das actividades planificadas estão concluídas em todas as frentes, menos a obra da Technofab/Gamon.
A título de exemplo, a nossa Reportagem apurou que o progresso físico das obras de construção de fontes de água em seis distritos de Cabo Delgado indica que foram construídas 256 fontes, contra 250 que constavam do plano e, em sete distrito de Nampula, o MCA conseguiu construir 614 fontes de água contra 600 planificadas.
Em relação à barragem de Nacala, conforme testemunhámos no terreno só falta concluir a colocação da relva nas encostas, fazer apertos aqui e ali, e concluir algumas arestas, o que coloca o progresso físico desta obra em cerca de 98 por cento.
Outras obras executadas no quadro do MCA, como são os casos das estradas rio Ligonha-cidade de Nampula, com 75 quilómetros, Namialo-rio Mecutuchi, também com 75 quilómetros tem um progresso assinalável de cerca de 85 por cento.
No que se refere ao programa do combate ao amarelecimento letal do coqueiro, que estava a ser realizado na província da Zambézia, o índice materialização situa-se em 100 por cento, no programa de acesso seguro à terra foram atingidos 98 por cento de execução e nas obras de construção de sistemas de drenagem das cidades de Nampula e Quelimane a cifra é de cerca de 90 por cento de sucesso.
A única nódoa nos programas do MCA resume-se ao consórcio Technofab/Gamon que se quedou em imperceptíveis 20 por cento. Durante a semana passada, quando visitamos os estaleiros desta empresa, os trabalhadores estavam a recolher os varões para acondicioná-los em locais protegidos do sol e da humidade para que o próximo empreiteiro possa dar seguimento à obra.
O que também joga contra este consórcio é que aqueles materiais de construção tem especificações que só servem para aquele tipo de obra, pelo que está de longe descartada a possibilidade de tentar vender os varões ou tubagem para recuperar algum dinheiro para pagar a dívida com o MCA.
Por outro lado, parte dos 20 por cento de obra feita poderão ser demolidos pelo próximo construtor para permitir que a nova massa de betão possa se ligar àquela que já está enterrada, o que representa mais um dilema para a Technofab/Gamon.
Com barragem pronta e com uma capacidade de fornecer 15 mil metros cúbicos de água por hora, o governo assegura que vai continuar a fornecer água mas, recorrendo ao sistema actual que só fornece 300 metros cúbicos de água por hora, o que é um pingo perante as necessidades actuais.