Controlar o tráfego aéreo é uma missão algo espinhosa. Só pessoas treinadas e especializadas conseguem evitar que os aviões colidam, tanto no ar, como em terra. No quadro das celebrações do Dia Internacional do Controlador de Tráfego Aéreo, que se assinalou a 20 de Outubro último, fomos conhecer uma das profissões nobres da aviação civil. Na entrevista que se segue, Mário Arnaldo Tsamuele fala-nos dos contornos desta profissão, onde o mínimo erro pode ser fatal.
– Mário Tsamuele, controlador de tráfego aéreo, fala da sua nobre profissão em entrevista ao domingo
Qual é a sensação de estar a controlar quatro ou cinco aviões em simultâneo no ar?
É fascinante. Gosto de ter um número considerável de aeronaves sob minha responsabilidade. Se tiver apenas um avião não me sinto satisfeito.
Chegam a orientar, por exemplo, uns dez aviões ao mesmo tempo?
Mais do que isso. Os aviões estão distribuídos em espaços. Têm rotas. Tomam várias direcções. Não posso determinar qual o número máximo que posso controlar. O que acontece é que os aviões estando ainda em terra, o controlador consegue perceber se pode fazer descolar um determinado avião para ir se juntar às outras aeronaves que estão a sobrevoar. Se ele achar que naquele momento tem muitos e entende que não dá, informa ao piloto para fazer um compasso de espera e só descola quando for seguro para as outras aeronaves.
E no caso do avião que está a chegar ao aeroporto, por exemplo?
Para o caso do avião que está a chegar, deve vir a uma altitude elevada quando cá em baixo tenho vários aviões à espera para aterrar. Pode vir muito alto até aqui em Maputo e fazer um compasso de espera. Irá descendo em conformidade com o espaço que eu tenho para ele aterrar, pois naquele momento tenho outros aviões que estão a descolar em simultâneo.
Tem sempre a certeza das posições de todos os aviões?
Sim, tenho. Não posso determinar por exemplo “que agora só me vou ocupar dos aviões que estão para descolar até o último partir e só depois vou entrar para aqueles que estão para aterrar”. Tenho que colocar os aviões a descolar e outros a aterrar. Tenho que gerir o espaço dessa forma.
Como é que se faz a combinação quando um avião está para aterrar e outro para descolar?
Como se gere essa situação?
Temos o controlador de aeródromo e o controlador de aproximação. Esses dois controladores coordenam-se. Antes do avião colocar os motores a funcionar para sair, o controlador do aeródromo informa ao homem de aproximação que o avião xis está para sair. O homem de aproximação vai dar autorização se pode ou não pôr a funcionar os motores do avião, porque ele é que sabe quais são os outros aviões que tem. Está a calcular se põe em marcha, se circula na placa, se tem um a aterrar ou se vai descolar aquele avião antes do outro aterrar. Isso está em função do tráfego que ele tem naquele momento. É tudo coordenado.
Isso implica estar em permanente comunicação com os pilotos?
Essa é a parte essencial na relação entre o controlador e o piloto. Quando a gente perde essa comunicação, aí já é um problema.
É daí que surge aquilo a que chamamos “stress”. Quando perco a comunicação com um avião, a partir daquele momento já não estou bem. Não sei o que poderá estar a acontecer com o avião. A comunicação entre o controlador e o piloto é fundamental para eu estar muito tranquilo, sabendo que o avião está no sítio “xis”, que o voo está a progredir correctamente.
Quando comunicam com o piloto, ele diz a posição em que se encontra?
Sim, mas eu também confirmo essa informação em função do que estou a observar na tela.
Há um risco muito grande nesta profissão?
Risco há. Nós estamos aqui para evitar esse risco entre os aviões.
O objectivo fundamental do controlador é evitar colisões entre aeronaves. Pode ser na área de manobra ou noutra área. Ele tem a obrigação de manter um escoamento de fluxo dos aviões ordenado e expedido. Portanto, aqueles aviões que ele mantém em separação devem ser rápidos a sair e a aterrar.
Quais são as principais exigências para um controlador?
Acho que os cuidados são idênticos para qualquer cidadão. Não iria dizer que ele tem cuidados especiais. A única coisa é a própria saúde e concentração. Nós estamos sujeitos à Junta Especial Aeronáutica. De dois em dois anos somos submetidos a exames médicos.
Um controlador também tem de saber falar várias línguas, uma vez que os pilotos são de origem diversa? Como lidam com essa situação?
A língua de trabalho é o inglês.
Quer para piloto, quer parao controlador?
Sim. Os controladores são sujeitos a uma avaliação que confere um determinado nível de inglês para poder ter a licença como controlador de tráfego aéreo. Para além da língua, temos aquilo que chamamos de fraseologia, que consta na documentação da ICAO (Organização Internacional da Aviação
Civil), que deve ser usada na comunicação entre o controlador e o piloto. Está lá na documentação. Essa tem que se conhecer.
É crível um controlador na sua posição e um piloto a voar terem uma conversa banal como comentar, por exemplo, um jogo de futebol?
Não, ali só se pode falar especificamente daquilo que diz respeito ao controlo de tráfego aéreo. Então o controlador em
serviço não pode nem atender o telemóvel?
Não. Nem ler jornal! Essas coisas ficam fora. Ali naquela posição é proibido.
Já agora, quais e quantas posições de controlo existem? Comecemos pelo controlador de aeródromo.
O controlador de aeródromo controla os aviões que estão na vizinhança do aeródromo. As aeronaves que estão a chegar e as que estão a partir. Também os voos locais, porque pode haver aviões que estão a fazer treinos, que chamamos voos locais. Ele dá instruções de aterragem e descolagem das aeronaves. Em resumo, ele é que faz o controlo de aeronaves que estão à vista dele, num raio de seis milhas náuticas, o que equivale a 11 quilómetros, e do chão até três mil pés de altitude.
O que faz o controlador de aproximação?
O controlador de aproximação faz o controlo de todas as aeronaves que estão em aproximação e as que estão por partir. Este controlador faz o controlo de aeronaves que não está a ver ou que não estão à vista. Ele faz o controlo num raio de 82 milhas náuticas, o equivalente a 151.7 quilómetros de distância e até uma altitude de 145 mil pés. A partir das informações que possui nas baias, ele pode fazer a separação entre os aviões.
O que é baia?
Baia é este objecto (ver foto) que possui uma fita gravada com letras contendo os dados de um voo.
Quem é que escreve essas letras?
São extraídas da informação que recebemos antes do avião partir. O piloto quando está para fazer um determinado voo, vai ao despacho e emite um plano de voo, onde diz que vai sair de Maputo para a Beira, por exemplo. Que vai seguir na rota “xis” e no nível tal. Especifica o seu indicativo de chamada. Aqui tem o tipo de aeronave e a velocidade que ele vai tomar, o nível, a hora de partida e o tempo que levará para chegar à Beira. Quando ele descola toda a informação começa a fluir para a baia.
Em termos de informação, quais são as palavras que o controlador diz ao piloto quando está para partir?
Essa é a tarefa do controlador de aeródromo. Em inglês, ele diz por exemplo, “Mozambique – eight, eight, eight- wind – tree, five – zero, degree, one five knot, one way zero five, clear for take-off”. Essa é a informaçãoque ele dá para um avião que estápara descolar.
O que diz para um avião que está para aterrar?
“Mozambique one zero seven, wind tree five zero degree one five knot, run away zero five clear to land”. Desta maneira oavião aterra.
Fale-nos do trabalho do controlador de área?
O controlador de área faz o controlo de aeronaves que estão mais afastadas. Também controla as aeronaves que estão em rota, as que estão a sobrevoar e que não vão aterrar. As que cruzam o espaço aéreo.
E…
Temos também aquilo que nós chamamos de região de informação de voo, em que temos o espaço de todo o território nacional, em posições que estão demarcadas. Essa área é controlada a partir da Cidade da Beira, do Centro da Beira. Quando o avião descola em Maputo, nós controlamos até um determinado lugar do mapa e, a partir desse ponto, passa a ser controlado pela Beira.
A Beira é o principal ponto de controlo por causa da sua localização?
Sim. Mesmo um avião que não esteja no espaço da Beira, é controlado a partir de lá. A Beira está capacitada com um equipamento que chamamos “HF”, que pode controlar um avião que se encontra em qualquer lugar. O equipamento aqui em Maputo tem algumas limitações, mas que nos permite falar com os aviões.
No processo de aterragem, fala-se da existência de uso de equipamento auxiliar.
O que posso dizer é que nós temos equipamentos que auxiliam o avião até aos mínimos, mesmo em condições de mau tempo. Vamos supor que a visibilidade está muito reduzida. Temos instrumentos em terra que permitem auxiliar o avião até o mínimo dos mínimos. São esses mínimos que, se o piloto não conseguir ver a pista, tem de abortar a aterragem. Tem de fazer aquilo que nós chamamos “go around”. Em vez levar o avião para aterrar, levanta, prepara uma nova aterragem ou vai para uma pista alternativa. Dependendo da situação, ele pode abortar a aterragem e fazer uma segunda tentativa.
Mas, mesmo nessa situação, o piloto está em contacto com a torre de controlo?
Permanentemente. Ele deve estar em comunicação com a torre até desligar os motores do avião.
O que pode acontecer a um piloto que perca comunicação com a torre?
Há várias situações que podem acontecer. Ele pode perder a comunicação porque o rádio teve problemas e não consegue comunicar comigo ou posso ser eu a ter problemas como o rádio. Caso não se restabeleça a comunicação entre o controlador e o piloto, entra-se na fase de alerta. Acciona-se outros mecanismos para a localização do avião.
Insisto, o que é que é mais apaixonante nesta profissão?
O que eu posso dizer é que eu cresci e estou a envelhecer na aviação.
O que é que tem de paixão ser controlador aéreo?
É ver os aviões. Aquelas instruções que agente dá aos aviões. Ora vira para a direita, ora vira para a esquerda. Suba, desça, porque tem outro avião que está na mesma rota, isso é que torna apaixonante.
Eu se estou a fazer o trabalho e vejo que um determinado avião está a aproximar-se do outro, dou instruções para que um deles suba ou desça conforme o caso. Para mim é onde está a graça do serviço de controlo de tráfego aéreo.
Ao longo de todos estes anos que leva na profissão nunca presenciou uma colisão entre aviões?
Não, Não. A única coisa que aconteceu foi uma redução da separação entre os aviões.
É uma situação aflitiva ou preocupante essa…
Nós, como controladores, não podemos ir até esse pormenor. A separação tem que ser aquela que é recomendada. Não podemos permitir que aquela separação seja reduzida. Eu estou aqui na torre para evitar que isso aconteça.
O começo
Quando é que ingressou nesta profissão?
No início de 1982. Vinha do Ensino Geral. Em Fevereiro do mesmo ano fui a uma formação que se estendeu até ao mês de Outubro. Comecei por fazer o escalão mais baixo, que é Controlo de Aeródromo. Em 1986, fiz o Controlo de Aproximação e, em 1995, o Controlo de Área. Esta categoria é superior às que mencionei anteriormente.
Em 2006 concluí a formação em Supervisão de Serviço de Tráfego Aéreo.
São muitas etapas para uma profissão…
Efectivamente. Mais tarde surgiu a categoria de Vigilância em Rota, que nós chamamos ADFB. Fiz essa formação. É um sistema que permite ao controlador visualizar os aviões que estão no seu espaço. Para além das formações que mencionei, também fiz o curso de formadores.
Fez toda a sua formação no país?
Sim, mas tive alguma formação, pontual, fora do país. Também concluí o curso de examinador. Aliás, há formadores e há examinadores.
Gosta do que faz?
Logo que entrei, ao descobrir que se trata de uma de profissão um pouco invulgar, fiquei animado. Mas deixa-me dizer que quando vim para esta empresa, sabia muito pouco desta profissão. Só ouvia falar por alto do serviço de controlo de tráfego aéreo.
Por que motivo acha esta profissão invulgar?
Porque a própria formação envolve uma série de requisitos. Para a profissão entras como candidato simples.
Sabes quase nada do que te espera. Antes do início da formação propriamente dita és submetido a exames médicos e psicotécnicos, que é chamada Junta Especial Aeronáutica. No hospital existe um corpo de médicos que fazem um “check up” ao candidato, que dão a indicação se a pessoa pode ou não exercer a função de controlador de tráfego aéreo. Os médicos é que vão determinar se estás capacitado para fazer a formação e exercer a função de controlador.
Então, ser controlador detráfego aéreo exige muitaresponsabilidade…
Sim, muita responsabilidade e não só. Se formos a ver o que é o serviço de controlo de tráfego aéreo, diríamos que é um trabalho que se presta com o objectivo de evitar colisões entre aeronaves. Essa é a tarefa fundamental no controlo de tráfego aéreo.
Portanto…
Manter um escoamento de fluxo ordenado e expedito do tráfego aéreo, dar informações e sugestões para a condução segura e eficiente dos voos, alertar as entidades apropriadas sempre que uma aeronave necessite de serviço de busca e salvamento e prestar a devida cooperação são os fundamentos do serviço de controlo de tráfego aéreo.
“Já lidei com várias aterragens de emergência”
Tsamuele diz ter vivido diversas situações de aterragem de emergência. Conta-nos o caso de uma avioneta que sobrevoava um campo de futebol, no bairro do Chamanculo, em Maputo. Na área da aviação civil fala-se muito em aterragem de emergência. Qual é o papel do controlador perante essa situação?
Diria que se um piloto nota uma determinada anomalia no funcionamento do avião e estiver em contacto com o controlador informa o que está sucedendo. Pode ser um motor a falhar ou bomba a bordo. A partir daquele instante, aquele avião tem prioridade em relação às outras aeronaves. Se ele informa que se encontra numa dada situação, cá em terra nós preparamos todas as condições para ele poder aterrar. Ficam posicionados os bombeiros e outras forças para receberem o avião e entrarem em função dependendo daquilo que for a situação em concreto.
Já lidou com uma situação de aterragem de emergência?
Várias vezes. Não é coisa fácil.
Pode partilhar connosco uma dessas situações?
Numa aterragem de emergência, o avião reporta uma certa situação. Pode ser falha de motor por exemplo. Outros aterram e param logo na pista. Até pode reportar que tem combustível em falta. No lugar de colocar aquele avião em espera no ar, tenho que afastar os outros todos e fazer com que ele vá directamente para a pista. Isso tudo está preparado e preconizado de como é que deve ser feito.
Dessas situações, qual é a que se recorda?
(Silêncio e pausa para reflexão…)
Faz muito tempo?
Não sei se devo referir quando estava no avião ou a trabalhar.
Quando se encontrava a trabalhar…
Tem várias. Mas posso falar de uma aterragem de emergência ocorrida faz tempo.
Era um voo interno ou não?
Era uma avioneta, com um passageiro.
Vinha de onde?
De Komatiport.
O que é que se estava a passar com a avioneta?
Reportou falha de motor e então fizemos todas as diligências, só que o avião não conseguiu chegar à pista.
Despenhou?
Não foi bem despenhar. O piloto conseguiu fazer uma aterragem no campo de Zixaxa, no Chamanculo. Como era um avião
pequeno, o piloto teve a certeza que não ia conseguir chegar à pista. Vendo aquele espaço do campo preferiu aterrar naquele lugar. Por sorte, tudo correu bem.
Nunca viveu uma situação com um avião que levava muitos passageiros a bordo?
Aqui em Maputo, a única emergência de que me recordo é o avião vir com um determinado problema, mas que aterrou normalmente. Aterrar e depois quebrar-se, não.
Texto de Benjamim Wilson
Fotos de Jerónimo Muianga