Texto de Jorge Rungo
A capital do Zimbabwe, Harare é uma cidade com sinais evidentes de que viveu bons momentos num passado recente. Nem as sanções económicas regidas pelo chamado ocidente não conseguem apagar aquelas marcas. Porém, apesar das dificuldades, a capital não verga.
Preserva as tradições e a boa índole. Pena é que ao cair da noite falte luz nas largas avenidas, muitas delas com nomes de gigantes da história africana. É escuro, mas não falta “Nyama ni Sadza” (carne com xima).
“Nyama ni Sadza” é assunto muito sério para os zimbabweanos. Come-se carne nos mais variados quadrantes do país, com destaque para a capital, Harare, cidade que tem o estatuto de província e que acolhe cerca de um milhão e meio de habitantes.
Comer carne nesta cidade é como mascar pastilha elástica ou chupar um rebuçado. Em quase todas as esquinas tem pequenos restaurantes de “fast food” (comidas rápidas) onde o frango e a carne de vaca capitaneiam os menus e as preferências da clientela.
No lugar de famosos restaurantes de grupos ocidentais como o Kentucky Fried Chicken (KFC), Steers, Nandos, Mimmos ou Mac Donald, em Harare sobram casas como Chicken Inn e Chicken Grill onde em poucos minutos o cliente pega num naco adorna-o com piri-piri, reforça-lhe o sal, faz um enfeite com uns pingos de mayonnaise e molho de tomate, e come à mão.
De igual modo, sobram espaços onde se pode devorar uns nacos de vitelo com salada, batata frita ou xima (massa de farinha de milho), este último que é o acompanhamento mais apreciado. Em conversa com um jovem local, que disse chamar-se James, ficamos a saber que se alguém quer ver uma convulsão social no Zimbabwe que mexa no preço da farinha de milho.
Mesmo a propósito dos hábitos alimentares, a população zimbabweana se esquiva de temperar as carnes com alho. “Alho não!”, Dizem como se estivessem perante algum veneno. Porquê, quisemos saber. “Provoca mau hálito, retorquiram.
No que se refere aos temperos, constatamos que as saladas postas à mesa não levam azeite. É só sal, vinagre ou mayonnaise. A alface vem apenas com rodelas bem grandes de tomate. Cebola? Apenas uma tira e… “bom apetite!”
De tão vincados que são nos seus gostos e paladares, os zimbabweanos não são fadados a frequentar os poucos restaurantes que servem comida portuguesa, como é o caso do restaurante “Paulaʼs Place” que se localiza fora daquela capital e que por dentro tem tantos enfeites que dá a impressão de que se está num restaurante chinês.
Tem também um espaço chamado Coimbra, no centro da cidade. Talvez por causa do alho na comida, poucos cidadãos locais comparecem. Preferem os inúmeros pontos onde a “Nyama” é assada na brasa para comer com “sadza” e à mão.
Também surpreende o facto de depois das 21 horas não haver lugares “jeitosos” para comer. Fecha tudo. Não foi por acaso que na viagem de ida recebemos o aviso: “Jantem por ai em Johannesburg porque quando cá chegarem, depois das 21 horas, estará tudo fechado”. E fecha mesmo.
Com tanto carinho pela carne não surpreende que quando chega a hora de exibir o potencial pecuário os criadores zimbabweanos o façam com tal mestria que os pastores dos países vizinhos se sintam pequenos. Na pecuária, aquele povo fala como adulto. Há muito que aprender deles.
Há também muitas lições a tirar da agricultura, sector que hoje anda mal das pernas por causa da seca e da falta de investimentos robustos, como acontecia nos tempos em que as relações com a Inglaterra e seus parceiros ocidentais eram de beijos, abraços e palmadas nas costas. Mesmo assim, há comida para quase todos e eles fazem questão de demonstrar.
Aliás, é preciso ter presente que há alguns anos, o Zimbabwe conquistou o prémio do Fundo das Nações Unidas para a Agricultura (FAO) de maior produtor africano de alimentos. Era o celeiro de África e a concorrência lambia os seus pés.
Com todas as sanções que lhe são aplicadas, este país continua a ser o maior produtor de tabaco da mais alta qualidade, aquele que multinacionais como a Marlboro e Peter Stuyvesant dão a vida para adquirir. Conta-se à boca pequena que algumas destas grandes empresas mergulham em esquemas para chegar ao tabaco zimbabweano.
É também importante lembrar que o país de Robert Mugabe já foi um dos maiores produtores e exportadores de flores, incluindo rosas e orquídeas, para a Europa que hoje lhe vira as costas. Aviões de grande porte voavam de quase todo o “velho continente” para Harare só para recolherem flores. Mudaram-se os tempos…
ATERRAR AO SOM
DE OLIVER NTUKUDZI
Conforme referimos antes, o Zimbabwe e a sua capital não vergam um único milímetro perante as sanções económicas impostas. Pelo contrário. Há um ano estabeleceu uma companhia aérea denominada “Fly África” que faz a ligação com a cidade sul-africana de Johannesburg e que funciona em regime “low cost” (baixo custo).
O que deixa o passageiro boquiaberto é que as hospedeiras envergam sapatilhas comuns (All Star), calça jeans e camisete. Nem os penteados e maquilhagem conseguem destaca-las das passageiras. Só quando se finalizam os preparativos do voo é que se percebe que se está perante membros da tripulação.
Por outro lado, naqueles voos tudo está à venda. Água, refrigerantes, cervejas, entre outros. Não há “oferta da casa”. Só para se ter uma ideia, uma lata de cerveja, das mais pequenas, custa quatro (4) dólares americanos, o equivalente a 160 ou mais meticais, dependendo da taxa de câmbio.
Todo este quadro contrasta com o que se assiste nos voos da companhia sul-africana, a South Africa Airways, que faz a ligação com Harare usando um avião de tipo Airbus, com um serviço de bordo de requinte. Ao aterrar, o comandante faz questão de rolar pela pista com os passageiros a escutarem a música de Oliver Mtukudzi. “Neria, Neria oh…”
CIDADE SEM LUZ
Cumpridas as formalidades migratórias, restam 13 quilómetros até ao centro da cidade de Harare. Para quem chega ao anoitecer, o percurso é feito na escuridão, excepto a luz emitida pelos faróis das viaturas que cruzam apressadas na “Airport Road” (Estrada do Aeroporto).
Depois de uns oito quilómetros, faz-se uma curva à esquerda pela Avenida Dieppe que vai dar à estrada de Seke que, por sua vez, nos vai conduzir até à famosa e enorme Avenida Samora Machel, onde se localiza a Reserve Bank of Zimbabwe (Banco Central), a Autoridade Zimbabweana de Turismo, tribunal supremo, entre outras importantes instituições.
Por ser noite, só se vê que há prédios altos, com arquitectura moderna, envidraçados e algumas luzes acesas. Mas poucas. Nas ruas dá para ver cidadãos a disputarem espaços nos transportes semicolectivos que, por sua vez, competem ferozmente pela clientela a ponto de se bloquearem uns aos outros, como se faz por cá.
Enquanto se enfrenta um pequeno engarrafamento provocado pelo semáforo que está no vermelho, observamos que os “chapas” de lá também levam cobradores que agem como os nossos. Os motoristas, idem. Tudo igual. “Estamos em casa”, pensamos.
Da janela do quarto localizado no sétimo andar do Cresta Jameson Hotel, onde nos alojamos, assistimos ao “murchar” do movimento dos carros nas avenidas Samora Machel e Nelson Mandela que não tem iluminação pública, o que é uma pena. Mete dó ver estradas daquelas às escuras. Dá uma raiva! Os postes e os candeeiros estão lá. Mas luz que é boa, nicles.
Nos dias que se seguiram mergulhamos no verdadeiro Harare, onde a moeda corrente é o dólar americano envelhecido pelo uso. “Very used” (bastante usado), como eles dizem. Nas poucas despesas que fizemos procuramos acertar o preço para não recebermos aquelas notas de um dólar que parecem troco de vendedeiras de carvão em montinhos. Parece que há um esforço colectivo para espezinhar aquele dinheiro.
Depois da surpresa das notas, caímos no espanto ao tomar conhecimento de que naquela cidade o transporte semi-colectivo é feito por quem quer. Basta ter uma viatura. Pensamos que fosse uma piada, mas é facto. Tem viaturas de tipo Toyota Vitz, Starlet, Spacio, Nadia, Gaia, Honda Fit, entre outros turismos a fazer “chapa”.
Nos carros mais pequenos, o espaço é explorado até ao limite. Para além do motorista, no banco de frente sentam-se mais dois e no banco de trás quatro passageiros. Todos apinhados, o que até nem faz tanta diferença quando comparado com os “chapa” comum. Também tem carrinhas que fazem o serviço de transporte de passageiros que por cá é conhecido por “my love”.
Excluindo a Avenida Samora Machel, nas restantes avenidas e ruas há vendedores ambulantes de todo o tipo de bens. Avenidas como Nelson Mandela, Sam Nujoma, Julius Nyerere, Leopold Takawira, Robert Mugabe, Robson Manyika, entre outros.
MBARE E CHITUNGWIZA:
O ÂMAGO DE HARARE
Dias depois, quando já tínhamos algum domínio da parte urbana mais chique da cidade, decidimos ir conhecer o gueto, lá onde vive o zimbabweano “original”, sem maquilhagem. O nosso colega de trabalho, o jornalista Ricardo Pequenino, da Televisão de Moçambique, que passou uma temporada naquela cidade ofereceu-se para selecionar o roteiro e servir de guia.
A manhã de sábado ia a meio e a disposição estava nos píncaros. Havia um repertório de anedotas para animar a todos. Inclusive tradução em inglês para que o motorista pudesse rir a saber porquê. “Primeiro vamos a Mbare”, disse o guia de ocasião.
Quinze minutos e viagem e já estávamos no local. Na verdade, Mabre é um bairro que vive em órbita dum imenso mercado que, por sua vez, tem corpo e alma por causa do terminal de transportes colectivos e semi-colectivos que ali foi criado.
Trata-se de um local que faz lembrar o terminal da Junta, na cidade de Maputo, mas com um mercado informal em seu redor onde se vende tudo, incluindo camiões velhos com ares de candidatos favoritos à sucata. Não se percebe onde aquele mercado começa e muito menos onde termina. Tem malandros e trabalhadores irmanados pela luta pela sobrevivência.
Para além de bancas para a venda de géneros alimentícios, existe uma área reservada à venda batinas brancas usadas pelos seguidores de uma seita conhecida por John Marangue, a tal que proíbe os seus fiéis de frequentar a escola e unidades sanitárias.
O nosso guia foi aconselhado pelo motorista a escolher outro destino, porque ali poderíamos não sair felizes, pelo que o destino seguinte foi o bairro Chitungwiza, um bairro satélite de Harare que dista uns 30 quilómetros. O ânimo redobrou.
Ao sairmos de Mbare avistamos o mítico estádio de Rufaro, local onde actuou o também mítico Bob Marley, por volta de 1980, pouco depois da proclamação da Independência do Zimbabwe. Os portões estavam trancados, mas a vedação fala por si. Aquele empreendimento carece de cuidados intensivos.
Chegados a Chitungwiza observamos que o povo do Zimbabwe, com todas as dificuldades está a construir habitações, quase todas humildes, sem a sumptuosidade das vivendas que se avistam nos bairros de expansão das cidades moçambicanas.
O que fica claro no contacto com os zimbabweanos é que eles tem imenso orgulho da sua pátria. Consta que dentro do partido Zanu-PF, de Robert Mugabe, começam a haver expectativas em relação ao futuro do país, por causa da idade avançada do estadista (completa 92 anos em Fevereiro do próximo ano).
Uns entendem que em caso de necessidade de sucessão o poder deve ser entregue aos jovens. Outros querem que seja mantido nas mãos dos antigos combatentes. Outros ainda preferem alguém simplesmente adulto. Mas, esse assunto cabe somente aos zimbabweanos que são um povo bem letrado e que compreende perfeitamente as razões do actual cenário económico. O resto é cantiga!
Jorge Rungo