Nigéria é um dos colossos económicos e desportivos do continente africano. Porém, quem para lá se desloca deve manter o olho sempre aberto, pois, num ápice, pode cair numa rasteira espectacular.
Tem muito “Chico esperto” na área. Voltamos a pisar aquele solo, passados cinco anos depois da primeira experiência na qual o autor destas linhas foi sequestrado por algumas horas. Desta vez, tínhamos a lição mais do que estudada e contamos com a mão das autoridades locais que capricharam na segurança.
Viajar para a Nigéria é uma experiência fora de série por ser um país que não é muito apelativo em termos de locais históricos de tipo fortalezas, museus, praças, gastronomia ou folclore. Para os apreciadores de cerveja, existe a “Star”, agora também numa versão “Lite”, que é a mais popular.
O que há de sobra por lá é o superpovoamento dos bairros, engarrafamentos nas estradas, “chapas” amarelos de marca VW todos envelhecidos por embates frontais e laterais, calor húmido e a sensação de vulnerabilidade perante gente que não perde uma oportunidade de ludibriar um forasteiro incauto.
Sendo “viente” como se diz lá para o Norte do nosso país, o ideal é seguir à risca as recomendações de segurança que os anfitriões vão dar, pois, de outro modo, um sequestro pode ser uma pequena amostra daquilo que pode suceder com quem se arme em espertinho e saia dos caris.
O convite para retornar a Port Harcourt, River State, Bonny Island e cidade de Lagos, na Nigéria, foi formulado pela Orlean Invest, uma holding com interesses empresariais na província de Cabo Delgado, Norte de Moçambique. Aquela empresa recorreu aos préstimos da Empresa Nacional de Hidrocarbonetos (ENH) para levar alguns jornalistas nacionais que lidam com questões económicas e que entendam o mínimo sobre investimentos no sector de petróleo e gás.
Depois de tramitada toda a papelada, embarcamos num avião executivo com indicações de que chegaríamos ao destino em cerca de cinco horas, com a necessária ressalva em relação ao fuso horário. Mal o avião descolou, percebemos que aquela não seria uma viagem comum, uma vez que passados cerca de 10 minutos sobrevoamos o espaço aéreo sul-africano.
Dentro da cabine reservada aos passageiros é tudo caprichado, com o melhor que há em termos de assentos de classe executiva, sem aquele ruído comum de motores, telefone por satélite, lavabos equipados com gel, loção, toalhas, espelhos, entre outros acabamentos impecáveis e um serviço de mesa que fazia lembrar os melhores restaurantes de terra firme.
Para tornar a viagem relaxante, o pequeno-almoço incluiu café e chá à escolha, chocolate, fruta, cogumelos e companhia servidos em cerca de hora e meia. Simplesmente fenomenal. Porque o tempo de voo era mais do que suficiente, ainda sobrou espaço para acepipes e, como “a alegria vem da barriga”, ecoaram anedotas recentes e passadas, daquelas de fazer rir até lacrimejar.
Enquanto se rebolava ao riso, dava-se uma vista de olhos nos ecrãs “LCD” montados na cabine de passageiros, os quais indicavam que seguíamos a uma altitude superior a 42 mil pés (próximo dos 13 mil metros de altura) e a uma velocidade de cruzeiro de mais de 900 quilómetros por hora.
Curioso foi observar a partir daqueles painéis que a cidade de Luanda está cercada de “fazendas”, aquilo que por cá chamamos de “quintas”, algumas das quais com nomes familiares, como a Fazenda Mocumbi. Pouco antes, enquanto sobrevoávamos a província de Maputo, apareceram na tela nomes de régulos. Chefe Magaia, Chefe Tembe, Chefe Machava, entre outros. Na parte mais a Norte do território sul-africano a coisa era outra. Ga-Motsi, Ga-Ndembele, tudo a começar por Ga-…
Nigeriano Adam. O adivinho.
Depois de cruzar sucessivamente os céus da África do Sul, Namíbia, Botswana, Angola, um pouco da República Democrática do Congo, Congo Brazavile, Gabão e São Tomé e Principe, a aeronave pousou na parte mais nobre da placa do aeroporto de Port Harcourt, na parte central sul da Nigéria. Como é natural naquela região atravessada pelo Equador, a temperatura andava acima dos 35 graus Celcius.
Desembarcamos e havia um autocarro com mais de uma dezena de homens de protocolo que se atropelavam para indicar o caminho, recolher os passaportes, bagagem, identificar os nossos nomes e distribuir as chaves dos quartos, enfim. Aquela agitação fez-nos recordar que a população nigeriana é estimada em cerca de 200 milhões de habitantes, pelo que, para cada visitante, um “protocolo”.
Enquanto entreolhávamo-nos e achávamos tudo aquilo exagerado, o autocarro deslizava por cerca de 50 metros para em seguida estacionar e mandarem-nos desembarcar. “Por favor, passem para aquele carro”, disse um homem tipicamente nigeriano, daqueles altos, fortes e com o sotaque que faz lembrar os vendedores de peças de viaturas que pululam pelas cidades e vilas moçambicanas.
Pouco depois, o mesmo homem, que parecia liderar o “protocolo” apontou e disse naquele inglês à nigeriana: “O senhor é o Jorge (George)?” “Sim, sou!”. Como está, meu amigo Jorge? O coração pulou. “Não te assustes. Meu nome é Adam e trabalho para a Orlean Invest. Olhei para ti e adivinhei. Acertei, pois não?”, disse ao mesmo tempo que ia apontando para outros colegas e indicava os respectivos nomes. Só mais tarde é que percebemos que Adam tinha tido acesso à nossa documentação, incluindo fotografias.
Escolta, sirenes e metralhadoras
Sem passaportes e com as malas encaminhadas para outra viatura, abandonámos o aeroporto, escoltados por quatro viaturas repletas de homens armados e munidos de aparelhos transmissores dos quais se ouviam instruções diversas.
Poucos metros depois, a verdadeira Nigéria emergiu aos nossos olhos. O tráfego congestionado impedia a passagem da nossa caravana. As sirenes e buzinadelas que os elementos da escolta emitiam pareciam agravar a situação, tendo em conta que os automobilistas e peões se enchiam de curiosidade na expectativa de descortinarem quem eram os ilustres beneficiários daquela honraria.
No lugar de abrir alas, alguns automobilistas experimentavam acelerações e corriam para a dianteira do carro cimeiro (dos batedores da escolta), colocando de avesso tudo o que sabemos sobre condução em circunstâncias similares. Com as sirenes e buzinas a fundo, alguns agentes esbracejavam quase sempre em vão.
Com esforço, chegamos à cidade portuária de ONNE que, na verdade, é um imenso porto onde se desenvolvem actividades ligadas à logística de petróleo e gás, com uma pequena área reservada ao trânsito de produtos contentorizados.
Na área de ONNE todos os movimentos são monitorados 24 horas por dia por cerca de 400 camaras de vídeo instaladas em postes de iluminação pública, telecomunicações, hastes, entre outros cantos. Os trabalhadores deste recinto portuário são vigiados por cartões electrónicos que indicam a que horas chegaram, por que porta entraram, o que fizeram e a que horas saíram.
Para os trabalhadores expatriados e locais que ocupam cargos de chefia na base logística e nas empresas petrolíferas foram construídas residências (e que residências), restaurantes, espaços de lazer, desporto, unidades sanitárias para evitar que estes se tornem vulneráveis à acção de grupos criminosos que actuam nas cercanias.
É que, para a maior parte da população nigeriana, a exploração do gás e petróleo só serve para enriquecer um punhado de nigerianos e companhias estrangeiras, pelo que muitos não hesitam em raptar cidadãos estrangeiros ligados a empresas como a Anadarko, ENI, Petrobras, Total, Statoil, Exxon-Mobil e Chevron para tentar extorquir alguns milhões de dólares de resgate.
Outros mais ousados arriscam a vida a tentar furar pipelines para drenar o petróleo bruto em tanques cisterna improvisados para depois refiná-lo de forma artesanal e vender os derivados nas esquinas. Foi durante a recolha de imagens sobre este tipo de actos que, há cerca de cinco anos, fomos sequestrados numa comunidade conhecida por Akhala Olu, localizada no interior do Estado de Bayelsa, no Sul da Nigéria.
Andávamos por ali a fotografar a destruição provocada pela explosão de um pipeline, depois de uma tentativa de perfuração para roubo de crude, e que resultou na morte de cerca de 300 pessoas. O incêndio tinha sido tão violento que alguns corpos viraram cinza. De repente vimo-nos cercados de homens armados que nos conduziram para um casebre sob a ameaça activa de armas brancas e de fogo. Como saímos dessa? Por puro milagre e algum dinheiro que levamos.
Boko Haram
Desta vez, a segurança era forte mas, ainda assim, deu para perceber que o “Senhor Jesus” está em acção naquele país, a par da venda de combustível. Mal saímos do aeroporto de Port Harcourt, observamos que a maior parte dos edifícios mais majestosos são igrejas. “As igrejas são o novo petróleo. Quem tem uma está rico”, disse Adam, o tal “adivinho” nigeriano.
Por ali, os cartazes mais apelativos levam sempre a imagem de um pastor ou casal de pastores que sublinham a sua capacidade de operar milagres num estalar de dedos. Nas vilas mais populosas, o número de templos, multiplica-se como barracas nos bairros das cidades moçambicanas.
De igual modo, e também na cidade de Lagos, o que não falta são bombas de combustível. Entretanto, e como não há bela sem senão, muitas destas estão às moscas porque, “temos mais bombas que petróleo”, conforme palavras de Adam.
Para além de igrejas e bombas de combustível, a capital económica da Nigéria, a cidade da Lagos, é uma espécie de conglomerado de ricos demasiado ricos e pobres. Edifícios modernos e envidraçados, hotéis e restaurantes de primeira partilham espaço com vendedores de rua, lixo, casebres precários construídos na orla da cidade, enfim.
A mescla de riqueza extrema e pobreza pura e crua é notória na travessia da ponte com mais de nove quilómetros, que une o centro da cidade de Lagos à Ilha Victória e à zona chique de Lekki, onde se pode ver ricaços locais em iates de última geração a navegarem lado-a-lado com barcaças improvisadas.
O que anima nesta região é que, apesar do risco de raptos ser eminente para quem ande por ali sendo estrangeiro, os grupos que por ali actuam não têm nada a ver com o Boko Haram, que é um movimento rebelde que numa mão segura armas de tipo AKM e na outra ergue o alcorão.
O tal Boko Haram actua mais para o Norte do país e só complica a vida dos próprios nigerianos pois, não hesita em se fazer fortalecer militarmente recrutando adolescentes do sexo masculino e sequestrar raparigas em idade escolar para, supostamente reivindicar um direito caipira de criar um estado islâmico que se deve reger com base na sharia, uma lei islâmica com mais deveres que direitos.
Enquanto circulávamos pelas ruas daquele país, recorde-se, enclausurados num cinturão de segurança fortemente armado, a imprensa local fazia manchete com a actuação criminosa daquele bando que matou cerca de 300 pessoas, violou dezenas de raparigas e sequestrou outras 276 adolescentes. Naquele meio, ainda que se esteja a jantar de luxo, o medo faz um cerco a todos.
Jorge Rungo