A capital do Uganda, Kampala, é um grande bazar. Um mercado onde todos vendem e todos
compram de tudo. Por ali ninguém obedece a horários. É domingo à noite? Eles estão lá, na rua, a vender. De engarrafamentos nem se fala. Quem vai ao volante deve ter paciência ao quadrado. Pior porque o exército de “chapas” não dá trégua a quem quer seguir regras. Mas também tem motas que fazem táxi e podem transportar até quatro passageiros… numa boa! Em suma, a cidade de Kampala dá reportagem por cada metro quadrado.
O título “O Grande Bazar” não é nosso original. “Roubámo-lo” do filme do cineasta Licínio Azevedo, que conta a estória de doismeninos com experiências e objectivos diferentes que se encontram no mercado do “Vulcano”, na zona do bairro do Aeroporto, em Maputo.
Naquela ficção de Azevedo, produzida em 2006, um dos meninos procura trabalho para readquirir um bem que lhe foi roubado e poder voltar à casa. O outro rapazinho não olha a meios e chega mesmo a roubar para sobreviver e não ter de viver com a família. Apesar destas diferenças, eles tornam-se amigos e juntos reinventam o mundo.
Filmes e ficções à parte. A porta de entrada de Uganda é o aeroporto de Entebbe, que fica no sul do país, cuja pista de aterragem, tanto de um, como do outro lado, termina nas praias do imenso Lago Vitória, o que torna as aterragens e partidas bastante emocionantes. Lá de cima, é possível perceber por que se diz que o Uganda, Ruanda e Burundi são países dos Grandes Lagos.
O aeroporto de Entebbe é bem pequeno, quando comparado com o nosso, de Maputo. Porém, recebe cerca de 14 voos diários de aviões idos de todo o mundo, com particular destaque para as companhias mais badaladas do mundo como a Qatar, Quénia, Emirates e South African Airways (SAA).
Ao contrário do que acontece em alguns países da África Ocidental, como é o caso da Nigéria, onde o viajante se aproxima do guichet de migração do aeroporto Murtala Muhammed, na cidade de Lagos, e o funcionário diz, na maior “cara de pau”, que falta uma página no passaporte (para obrigar o forasteiro a “molhar as mãos” do funcionário com 10 ou 20 dólares), em Entebbe, nada disso, apenas saúdam, sorriem, ajudam e agradecem.
Mal abandonámos o aeroporto, o nosso guia de ocasião fez questão de nos mostrar o Uganda State House, ou seja, a residência oficial do Chefe de Estado, Yoweri Museveni, que fica no pico de uma das muitas colinas existentes por ali. O melhor momento para apreciar aquele edifício é à noite, quando as luzes destacam o palácio. Aí ninguém duvida. Aquele é o State House mesmo!
Ainda na saída do aeroporto é possível ver o Quartel-General das Forças das Nações Unidas destacadas para pacificar a região dos Grandes Lagos. A vedação, a imensidão das tendas, os aviões cargueiros pintados de branco e toda a segurança montada em redor falam bem alto.
A partir deste local começa a viagem que nos vai levar para a cidade de Kampala. O troço é de escassos 44 quilómetros (km), mas que são percorridos em mais de quatro horas, porque, esta é, até ao momento, a única estrada que liga o aeroporto à capital do país. Por incrível que pareça, esta via não tem bifurcações que possam servir de corta-mato. Entrou na via? Vá até ao fim! Também não há iluminação pública em todo o percurso.
O bazar!
Poucos metros depois de abandonar o recinto coberto pela residência oficial e pelo Quartel-General das forças de manutenção da paz, as margens da estrada ficam imediatamente inundadas de… barracas, bancas, lojas, lojecas, barracões e supermercados de todas as dimensões.
Para colorir o ambiente, e dar ênfase a cada espaço de venda, os vendedores produzem e hasteiam cartazes que anunciam os produtos disponíveis. Vende-se tudo, desde o simples alfinete até mobília, comida pronta a servir, roupa, ferragens, electrodomésticos, aparelhagens sonoras, fruta e por aí em diante.
Onde os olhos e o cérebro do viajante repousam um pouquinho é nos pontos onde a natureza não deixa ninguém montar banca, nomeadamente nos locais onde existem pontes ou onde as margens possuem elevações. Mas, mal o terreno volta a ser regular, lá estão os ugandeses a vender, vender e vender.
Enquanto transitávamos por aquela via, olhámos para o relógio. Eram 22.00 horas locais, de domingo. Porém, os vendedores não mostravam sinais de pretenderem arredar pé. Salões de beleza, barbearias, oficinas, car-wash, serralharias, carpintarias, entre outros estabelecimentos, continuavam tranquilamente abertos.
A par do frenético ambiente de compra e venda, também testemunhámos a circulação dos “chapas” locais, chamados “matato” (que significa três), cujos motoristas e cobradores se comportam como os nossos. Ultrapassam pela direita e travam de repente. Enquanto um ultrapassa pela direita, outro faz o mesmo pela esquerda. Também se bloqueiam uns aos outros, enfim. É “chapa”, mesmo. Só muda o nome.
A designação “matato”, tal como “chapa 100”, vem dos tempos em que aqueles transportadores cobravam três shelins ugandeses e este nome é usado igualmente no Quénia, onde os “matateiros” comportam-se como os “chapeiros” de cá.
Os “boda-boda” e o labirinto urbano
Ainda estamos a caminho da cidade de Kampala e já sentimos que aqueles 44 km são um inferno. Partimos do aeroporto por volta das 20.00 horas e o engarrafamento continua intenso. Um pára-arranca doentio que só se torna pouco doloroso porque há muita coisa para apreciar nos passeios.
À dada altura apercebemo-nos que em certos locais há concentração de motas. São os táxis apelidados de “boda-boda”, cujos motociclistas podem levar até três passageiros de uma vez e “mergulhar” no labirinto do congestionamento tornando a vida dos automobilistas mais sofrida.
Outro detalhe que salta à vista naquele trajecto é o elevadíssimo número de bombas de combustível. Em certos quarteirões há duas ou três bombas e, à medida que nos afastamos da zona do aeroporto, o preço do litro da gasolina baixa de 38 mil shelins (cerca de 45 meticais) ugandeses para 36 mil shelins (aproximadamente 42 meticais).
Às portas do centro da cidade surge, finalmente, um cruzamento que até leva semáforo, mas só os donos da casa entendem as regras que ali se aplicam, porque vimos o sinal da nossa via fechado (vermelho), mas todos os carros que vinham no mesmo sentido entraram numa boa. Um agente da polícia estava ali “a ver a banda passar”. Não percebemos nada.
Mesmo a propósito de semáforos, observámos que Kampala é uma cidade com tráfego intenso, mas só possui uns 10 semáforos, sete dos quais concentrados no bairro central conhecido por Nakasero, onde está implantado o complexo do parlamento, as embaixadas, os principais hotéis, ministérios e onde funciona o mercado de Nakasero, um dos mais emblemáticos da cidade, senão mesmo do Uganda como um todo. No resto da cidade os automobilistas conduzem à sua sorte.
Quando o cansaço já nos derrubava, o nosso guia anunciou que estávamos a poucos metros do local da acomodação. Entretanto, o destino parecia cada vez mais distante, porque o motorista virava para a rua à esquerda, depois para a da direita, mais à frente seguia para outra rua da esquerda e a seguir ia para a direita. Foi o guia quem confirmou o que já nos ia na cabeça. Kampala é um labirinto urbano.
Na verdade, Uganda é um país com relevo muito acidentado, pelo que rareiam pontos planos e estradas rectas com mais de 500 metros. Circular por ali é sinónimo de subir, descer, virar, voltar a virar, enfim. Chegámos ao ponto de acomodação e ninguém conseguiu perceber como.
Também observámos a forte presença da polícia local nas entradas dos hotéis mais badalados, nomeadamente o Sheraton, Kampala Serena, Imperial Royale, entre outros. De todas as guarnições policiais, a mais difícil de transpor é a do Imperial Royale.
Na entrada deste hotel foi construída uma encruzilhada de blocos de betão, com cerca de um metro de altura e uns dois de largura. Ali, até os mais experientes pilotos de kart e motocross teriam dificuldades de atravessar.
Petróleo, reis e banana-pão
A economia deste país está a começar a dar passos largos à medida que a estabilidade social e política ganha forma. Segundo relatos colhidos em Kampala, desde que Yoweri Museveni e o seu partido, o Movimento Nacional de Resistência (MNR), chegaram ao poder, em 1986, o Uganda tem estado a equilibrar-se para manter a solidez da paz.
Entretanto, muito recentemente, um tal Joseph Kony (eles lêem Conhí), não se sabe por que caipirice, entendeu formar um grupo rebelde a que atribuiu o sugestivo nome de Exército de Libertação do Senhor, que cometia atrocidades no norte do país, alegando que pretendia impor o cumprimento dos 10 Mandamentos da Lei de Deus.
Dada a intensidade da barbaridade perpetrada pelo bando, o exército governamental, que é um dos maiores daquela região, pôs-se ao encalço do homenzinho, que fugiu a “sete pés” e agora se suspeita que esteja escondido algures, nas densas matas tropicais da República Centro Africana.
Para piorar a situação de Kony, ou Conhí, o Tribunal Penal Internacional (TPI) também emitiu um mandado de captura e o governo norte-americano, pela mão do Presidente Barack Obama, fez o mesmo. Porque uma desgraça nunca vem só, as tropas ugandesas abateram há dias aquele que era tido como Chefe de Estado-Maior General do famigerado Exército de Libertação do Senhor.
Com Kony “fora do baralho”, o bate-boca dos ugandeses foi desviado para a recente descoberta de petróleo anunciada pela empresa Tullowoil. Mal a notícia apareceu na imprensa, o governo e o parlamento entraram em rota de colisão. O governo quer que os concursos e as licenças de exploração sejam controlados pelo ministro que tutela a área, enquanto o parlamento prefere que aqueles documentos sejam passados e geridos por uma entidade independente e colegial.
Para tornar o ambiente mais turbulento, alguns deputados do partido no poder (MNR, de Yoweri Museveni) juntam-se à oposição nesta procissão. Pior mesmo é que até líderes tradicionais, que no Uganda têm o estatuto de reis, com direito à escolta real e privilégios, estão a ser mobilizados para fazer frente ao governo.
Monarcas tradicionais como o Baganda, que lidera o grupo étnico maioritário e que terá dado origem ao Estado do Uganda, bem como o rei Toro, da região de Kasese (eles lêem Cassesse), estão a ser “arrastados” para o barulho.
Perante este quadro, o Presidente Yoweri Museveni fez um pronunciamento que caiu como uma nódoa em pano branco. “Se for necessário, usaremos as Forças Armadas para restaurar a democracia”. Como é óbvio, a imprensa local, que é tida como bastante forte, publicou editoriais a questionar “Para onde vamos, Senhor Presidente?!”
O que deixa o Presidente Museveni quase sempre numa “saia justa” é o facto de ter um grande camarada seu, um médico com quem lutou contra o regime de Tito Okello, a lhe fazer oposição por via do Fórum para a Mudança Democrática.
Dadas as manifestações que rotineiramente o tal “grande amigo” promove nas ruas do país, o médico virou um hóspede regular das cadeias locais. Mas também existe o Partido Popular Nacional, entre outros que vão fazendo o seu papel no xadrez democrático local.
Excluindo a política, Uganda é um país sem fome. Chove por tudo e por nada, por ser um país que está na linha do Equador e o que há aos pontapés são bananas que servem para tudo. Frita-se, assa-se, come-se banana fresca e até se faz “xima” e pão à base de banana. Aliás, graças às bananas, o Uganda importa pouquíssimas toneladas de trigo.
O pesadelo dos ugandeses reside apenas no facto de dependerem da Tanzânia para receberem tudo o que importam. A porta de entrada de equipamentos e outros bens de consumo é o porto tanzaniano de Mombaça, onde as regras de desalfandegamento só penalizam os ugandeses.
Lixo? Nem sonhar. Aqueles quatro milhões de habitantes da cidade movimentam-se, compram e vendem, mas não se vê nenhuma embalagem deitada ao chão. Vivem em colinas, numa terra onde chove até dizer basta, mas não há erosão. Este é o retrato de Kampala, no Uganda. Um grande bazar!