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“Temos como produzir o ano inteiro”

Por admin

“Temos toda a condição, pelo menos na maior parte do país, de produzir ano inteiro, só que não o fazemos e acabamos sendo dependentes de importações, especificamente da África do Sul. Moçambique possui bom clima, água e um solo que é relativamente jovem”. Esta é a visão da moçambicana Nancy Taera que já ganhou a medalha de melhor estudante de Agronomia no Brasil.

O Brasil é um dos maiores produtores agrários e pecuários do planeta. Produz e exporta para todos os quadrantes e é nesta grande escola que Nancy Taera fez a sua formação superior completa. Licenciatura, mestrado e doutorado. “Lá tem de tudo. Excelentes qualidades de produtos e grandes exportadores. Nesse sentido profissional foi fantástico ter estudado naquele país. Não sei se poderia ter ido para um lugar melhor porque lá encontramos o básico, o médio e o grande que nos deram uma visão melhor do mundo”.

Apesar de nova em idade, Nancy tem um curriculum e experiência profissional de encher algumas páginas. Por exemplo, já lidou directamente com a extensão rural, numa iniciativa pessoal e trabalhou no Conselho Regional de Engenharia (que é o órgão fiscalizador da actividade profissional no domínio agrário do Brasil), entre outros contratos de curta duração

Para poder falar com autoridade sobre o campo agrícola, Nancy menciona que esteve ligada à Universidade Federal de Viçosa, também no Brasil que, num certo momento estava a desenvolver programas de estudo sobre o mercado da fruta e de bio-combustíveis.

Eram as duas coisas nas quais eu via futuro para o nosso país porque somos produtores de cana-de-açúcar e, por isso, com imenso potencial para a produção de etanol. E é bom que se saiba que o Brasil é um dos maiores produtores de etanol. Logo, uma verdadeira escola para nós”, disse.

Conforme referiu, a ligação a este projecto de estudo visava procurar técnicas para a produção de etanol a baixo custo e com maior rentabilidade. Por outro lado, pretendia descortinar que impacto essa produção poderia ter no mercado nacional, especificamente no mercado de alimentos. Mesmo sem ter terminado a graduação de licenciatura, submeteu e foi aprovada para fazer o mestrado em bio-etanol.

Nesta epopeia académica, Nancy produziu uma tese sobre as vantagens e desvantagens da produção de bio-etanol a parTir de material vegetal, ou seja, de segunda geração que, segundo revelou, também está a ser objecto de estudo nos Estados Unidos da América onde a matéria-prima é o capim-elefante.

O capim-elefante é um vegetal com menores qualidades comparando com a cana-de-açúcar que produz uma grande quantidade de resíduos que pode se transformar num problema ambiental se não tiver um destino adequado. Daí a minha opção pelo bio-etanol de segunda geração a partir cana. Com o potencial que temos, podemos deixar de ser dependentes de petróleo importado”, sublinhou. 

Para consolidar os conhecimentos nesta matéria, candidatou-se ao doutorado para estudar a fisiologia vegetal nos domínios do mercado e da produção de fruta e hortaliças. Neste entretanto, dedica um ano de trabalho de campo em lides com pequenos agricultores das cercanias da cidade de Quelimane, na Zambézia, local onde se deu conta dos erros que se cometem na nossa agricultura.

“É POSSÍVEL PRODUZIR O ANO INTEIRO”

Fizemos testes para produzir hortaliças e ficou claro que aqui, em Moçambique, ainda temos a oportunidade de investir pouco para ter algo rentável. No Brasil é mais difícil. Juntei alguns produtores e comecei sugerir pequenas alterações na forma como eles trabalhavam”, disse.

Entre as mudanças feitas, destaque vai para o espaçamento, condução da cultura, adubação e irrigação que podem oferecer melhor condições para se produzir durante todo o ano. “Temos todas as condições, pelo menos na maior parte do país, de produzir ano inteiro, só que a gente não produz, e nos tornamos dependentes de importação, especificamente da África do Sul”, enfatizou.

Entre as condições materiais para a produção, Nancy aponta a temperatura, o clima, a água e o tipo de solo que, segundo afirma, é relativamente jovem e, por isso, não requer tanto trabalho quanto os solos brasileiros, por exemplo.

Tomamos como exemplo o facto de a maior parte dos produtores continuarem a depender da chuva para irrigar e Nancy afirmou que há água doce disponível em muitos locais e mesmo assim se espera pela chuva, o que é um autêntico contrassenso.

Da experiência colhida em Quelimane, resultou na criação de uma associação de camponeses, na reigão de Cualane, que começaram a produzir hortaliças, tomate, cenoura, pimento e abóbora, culturas às quais se acresceu a produção local de couve e alface que, até então, era feita num curto espaço de tempo ao longo do ano.

Para irrigarmos, sem ter que dependermos da chuva, fizemos pequenos poços e, a menos de um metro encontramos água doce. Note que eles não produziam porque, supostamente não tinham água. Também aproveitei o momento para lhes mostrar que podem obter melhores resultados se deixarem e produzir o tomate de forma rasteira. A produtividade cai muito”, disse.

Aliás, aponta que no quadro daquele trabalho de campo, foi possível produzir melancia que não é cultura comum na Zambézia e no país em geral. “Nós produzimos e comercializamos”.

Entretanto, esta experiência, que já estava a surtir bons resultados foi travada pela divulgação dos resultados da avaliação para o doutorado e ficou literalmente em “banho-maria”. “Até já tinha aberto uma pequena empresa de selecção, classificação e comercialização de frutas e hortaliças, mas tive que abrir mão e regressar ao Brasil para terminar a formação”.

Muito recentemente, Nancy desenvolveu um projecto individual de assistência a um pequeno grupo de camponeses da Moamba, Boane e Ka Tembe e observou que estes têm a tendência de produzir muito próximo do rio e com um sistema de rega que consiste em inundar as calhas (valetas feitas entre as culturas).

Segundo referiu, este método traz resultados contrários aos esperados, uma vez que desperdiça bastante água. Por outro lado, e devido às altas temperaturas, a água aquece e queima as raízes e folhas, o que dificulta o crescimento das plantas. Perante este quadro, a investigadora diz estar a avaliar outras opções, pois, o sistema de rega conhecido por gota-a-gota continua a revelar-se caro para os camponeses locais, mas tem a vantagem de não carecer de muita mão-de-obra.

Na minha opinião, temos de propor metodologias que o agricultor possa aplicar sem precisar da presença de um engenheiro. Basta um técnico para que ele possa desenvolver. Estávamos a ver algumas opções e vamos começar atestar”, disse.

REVESTIMENTO COMESTÍVEL

Entre outros pergaminhos, Nancy Taera abraçou também o estudo do processamento mínimo de palmito (miolos de palmeiras) e de hortaliças, ao mesmo tempo que trabalhou em revestimentos comestíveis que são tratamentos que se dão, por exemplo, à fruta sem a aplicação de substâncias químicas. “Por exemplo, as mangas que importamos são submetidas a esse processo. Após a colheita aplica-se um produto químico e nocivo aos humanos para impedir o ataque de doenças”.

Segundo a investigadora, a opção pelo revestimento comestível é uma alternativa para o tipo de agricultura que temos em Moçambique e pode ser aplicada nos produtos colhidos, assim como nos que são minimamente processados. “O problema é que o nosso mercado não paga pela qualidade, mas, sim, pela quantidade”.

Porque o objectivo é desenvolver algo que possa trazer algum benefício para Moçambique, Nancy disse que trabalhou no desenvolvi mento de uma metodologia que permite atestar a qualidade do caju sem necessariamente encaminhar o produto ao laboratório para as análises pós-colheita.

Observei que somos obrigados a mandar os nossos produtos para África do Sul para serem analisados antes da exportação e isso acaba por nos penalizar porque se os testes são feitos fora quem coloca o preço do produto não é Moçambique, é quem atesta a qualidade”, afirma.

Para facilitar a vida dos produtores nacionais, Nancy diz que começou a trabalhar num método novo, com infra-vermelhos, que está a ser usado por uma meia dúzia de países europeus que permite fazer análises rápidas, com eficiências pontuais e com resultados em poucos instantes, inclusive no campo. “Fiz um teste para o caju e funcionou. Agora vou fazer para o melão. A ideia é ir desenvolver e melhorar”.

A vantagem do uso deste tipo de método está ligada ao custo dos exames laboratoriais, que são elevados, e à gestão dos resíduos dos materiais químicos que, neste caso não existem, para além de que os dados analíticos só são introduzidos uma vez e os resultados são imediatos, extremamente precisos e permitem ter uma leitura do sabor, acidez, cor, açucares, entre outros de uma só vez. “O que fiz até aqui já me permite medir 11 parâmetros”.

Da pré-primária

ao doutorado sem chumbar

A história de vida de Nancy Taera Samamade tem muitas particularidades que poderiam ter dado para o torto, mas quis o destino que acontecesse justamente o inverso. Imagine-se uma filha única que nunca viu o rosto do pai e só viveu com a mãe.

Ao contrário de muitas mães solteiras que esbanjam mimos para filho único como forma de “compensar a ausência do pai, Nancy afirma que não teve tanto privilégio assim, porque a mãe sempre foi de rédea curta. “Ela sempre foi muito exigente e eu me encaixei porque sou perfeccionista desde pequena. Sempre fiz tudo direitinho”, afirma com ar de quem tem saudade do passado.

Na busca incessante pela perfeição, diz que tinha hora marcada para tudo, inclusive para comer e para aprender as tarefas domésticas. “Eu aprendi a escrever com cerca de três anos de idade. Conhecia o abecedário e sabia o básico de matemática. A mãe sempre me incentivou, talvez por ser filha única. Acho que foi por isso que desenvolvi o gosto pela escola”.

Nascida na cidade de Quelimane, na Zambézia, fez o ensino primário, até à sétima classe, nesta urbe e seguiu para a capital do país para prosseguir com os estudos e foi parar na Escola Secundária Francisco Manyanga. À mudança de cidade também se adicionou o choque de passar a viver com mais gente na mesma casa. Para complicar as suas contas, era a única menina na casa dos primos. “Mas, depois a vida começou a fluir e nos demos muito bem”.

Também recorda que parte dos seus professores primários e secundários se sentiam desafiados porque questionava muito e os professores não estavam habituados a alunos com esse perfil. “Eu sempre quis saber como as coisas funcionam”.

Os primeiros sinais de interesse pela agricultura começaram a brotar quando, ainda criança descia com a avó para a machamba da família. “Eu madrugava para acompanhar a minha avó. Hoje sou engenheira agrónoma”.

O que Nancy Taera celebra mesmo é o facto de nunca ter reprovado e se diz sortuda porque foi parar ao Brasil para fazer o ensino superior por mero acaso. Antes tinha seguido para a Escócia para representar Moçambique numa das Conferências da Commonwealth, na qualidade de segunda melhor aluna da disciplina de Inglês da Escola Secundária Francisco Manyanga.

Depois disso um dos meus tios me falou da existência de bolsas de estudo para o Brasil oferecidas pelo governo brasileiro, por via do Ministério da Agricultura. O resto se desencadeou a partir daí”, concluiu.

Texto de Jorge Rungo

jrungo@gmial.com

Fotos de Inácio Pereira

 

 

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