Trabalho, rigor e humildade é o refrão de Milagre Macome “Mila”, treinador principal do Ferroviário de Maputo, quando abordado para comentar a caminhada vitoriosa da sua equipa na Liga Nacional de Basquetebol Sénior masculino edição 2016.
No início do presente ano, o Ferroviário de Maputo atribuiu a Milagre Macome a espinhosa missão de terminar com os cinco anos de travessia no deserto da equipa sénior masculina.
O técnico, que já se confundia com o mobiliário do Costa do Sol – treinou-o durante quase duas décadas – chegou, viu e venceu, dominando todas as competições em que participou.
Na final da Liga Nacional de Basquetebol Sénior masculino, o Ferroviário de Maputo bateu o seu homónimo da Beira no quinto desafio dos “play-off”. domingo abordou com o treinador campeão a mudança de ares e a trajectória vitoriosa dos “locomotivas”.
Pode-nos contextualizar sobre a sua transferência do Costa do Sol para o Ferroviário de Maputo?
Durante a época passada, 2015, chegou uma altura em que queria descansar e comuniquei essa intenção à direcção do Costa do Sol. Acontece que surgiu uma oportunidade do Ferroviário. Contactaram-me, as negociações foram difíceis, duraram cerca de dois meses. Depois acabei aceitando o projecto que me colocaram. A minha intenção inicial era ir descansar, recarregar as baterias e voltar com outra forma de estar, outras forças, mas acabei aceitando a proposta do Ferroviário por ser um projecto aliciante.
Quais são os objectivos definidos no âmbito desse projecto?
Claramente os objectivos principais são resultados desportivos. Tinha de reestruturar o plantel, que também estava meio desgastado depois de cinco anos sem qualquer conquista e tentar jogar ao mais alto nível. Felizmente, logo no primeiro ano conseguimos ser uma equipa extremamente competitiva, porque também trabalhei com a maior parte dos jogadores do Ferroviário nas selecções nacionais, por isso conheciam a minha filosofia de trabalho e o treinador, e isso acabou facilitando o nosso trabalho.
Com que bases construiu esta equipa que acaba de se sagrar campeã nacional?
A base passou por conservar os jogadores do Ferroviário da época passada. Defini claramente que tínhamos de fazer a manutenção dos jogadores e reforçar alguns sectores que julguei fundamentais, como na posição de primeiro base e de extremo mais alto. Não conseguimos um extremo mais alto e contratámos o Augusto Matos. Juntámos os reforços a uma filosofia de muito trabalho, muita humildade, muito sacrifício e muitas horas de trabalho.
Quais são as unidades que foi buscar para fortificar a equipa?
Contratámos para a posição de primeiro base Baggio Chimondzo, que já o conhecia do Costa do Sol. Para a posição de extremo trouxemos Aurélio Jr. e depois foi necessário termos um jogador de referência, da selecção nacional, dos melhores jogadores do país, por isso contratámos Augusto Matos.
Foi a um clube com um departamento de basquetebol já estruturado, com treinadores experientes, como foi recebido nesse novo meio de antigos rivais?
Fui recebido com satisfação, com crença de que conseguiria alguma coisa. Foram pessoas do departamento de basquetebol com quem conversei durante as negociações. Portanto, fui recebido com toda normalidade e criaram-me excelentes condições de trabalho e conseguimos conquistar no primeiro ano tudo o que havia por conquistar a nível das competições nacionais.
Nas competições da cidade de Maputo, Torneio de Abertura e Campeonato da Cidade, o Ferroviário passeou a sua classe. Não sentiu dificuldades da concorrência?
Vínhamos com a lição bem estudada, tendo em conta que o Desportivo era campeão da cidade e campeão nacional. O que fizemos foi incrementar o volume de trabalho, aumentámos a carga horária, trabalhámos com rigor, com humildade, respeitando todos os adversários. Definimos como lema jogo a jogo e disputámos as competições todas com dedicação. Fomos ao campeonato nacional sem conhecer o sabor amargo da derrota, todos os jogos que disputámos, com qualquer que fosse o adversário, dominámos por completo e ganhámos com margens de diferença superiores.
Já na Liga de basquetebol, que avaliação faz da prestação da sua equipa na fase regular?
As competições da cidade foram muito competitivas, tivemos a final do Campeonato da Cidade com o Desportivo que ganhámos por quatro a zero. Infelizmente, depois tivemos um interregno dum mês. Isso fez com que a nossa equipa baixasse um pouco de nível porque tivemos de baixar e voltar a recarregar. Mesmo assim, na fase regular da Liga fomos uma equipa dominadora: em sete jogos ganhámos todos e todos eles com margens muito folgadas, inclusive com adversários directos como o Desportivo e Ferroviário da Beira. Fomos uma equipa dominadora.
Chegaram à final e veio a primeira derrota da época. Foi um resultado que não deixou marcas na equipa?
Naturalmente reagimos com tristeza porque foi a primeira derrota. Sem tirar mérito à equipa do Ferroviário da Beira, porque fez um trabalho de casa muito bom, tivemos no grupo muita ansiedade, os jogadores estiverem muito ansiosos, com elevada falta de concentração, querendo resolver as coisas muito depressa. Não foram aspectos técnico-tácticos que determinaram o resultado, mas emocionais, porque estávamos ansiosos, queríamos fazer as coisas muito depressa e a pressa é inimiga da perfeição. No jogo que empatámos a série também não exteriorizámos o nosso basquetebol, mas no quarto e quinto jogos estivemos tranquilos e foi o que se viu, ganhámos com toda naturalidade, sem tirar o mérito ao adversário, que é uma equipa forte e bem treinada por Nazir Salé, que é o nosso grande treinador no país. Fomos dominadores e não lhes demos nenhuma chance. Repare que no conjunto de sete jogos que fizemos esta época com o Ferroviário da Beira ganhámos cinco. Isso significa alguma coisa e perdemos dois, que são as únicas derrotas que tivemos na época. Perdemos contra uma equipa muito competente e bem orientada.
Jogou a final contra um treinador vitorioso nos últimos anos como Nazir Salé, que reuniu vários jogadores experientes, de selecção nacional. Esse factor estimulou a sua equipa à vitória final?
Obviamente, é uma equipa forte que valorizou a nossa vitória. Bem estruturada, com jogadores extremamente competitivos, que valorizou a nossa vitória, orgulhou o nosso grupo. Foi uma vitória com algo especial tendo em conta o adversário que tivemos pela frente comandado pelo nosso mestre, nosso treinador, nosso campeão, foi uma vitória que moralizou o grupo de trabalho.
REPENSAR O BASQUETEBOL
Depois de experimentar o modelo duma final a sete jogos, no Campeonato da Cidade, que comentário tem da forma como foi disputada a Liga deste ano?
Já está provado que quando fazemos uma Liga regular de três a quatro meses, os nossos índices sobem, quer dos jogadores, quer dos treinadores, porque semana após semana pensamos no adversário, estamos todos concentrados a pensar no basquetebol. O modelo deste ano foi o possível, tendo em conta as dificuldades que temos no país, mas realmente há que redefinir o nosso basquetebol, adoptando modelos que se aproximem ao aplicado no Moçambola, que joguemos pelo menos três meses da época ao mais alto nível, isso vai permitir que o nosso basquetebol suba alguns degraus. Vimos isso nos Jogos Africanos de Maputo 2011, que o nosso desempenho foi também fruto do que fizemos na Liga Vodacom. Se continuamos com modelos desgastantes, com muitos jogos em pouco tempo, torna-se difícil avaliar exactamente o que podemos dar. Proponho que os que decidem analisassem, arranjassem formas de resgatarmos o modelo que foi da Liga Vodacom.
A qualidade deste Ferroviário pode indicar uma maior ousadia em competições africanas?
Acredito que tudo é possível, com humildade, muito trabalho, muitas horas de trabalho, com atitude e inteligência é possível tentarmos chegar longe nas competições africanas. Sabemos que existem três equipas angolanas que participam nas eliminatórias e outras. É difícil ganhar as equipas angolanas, mas com muito trabalho, entrega, humildade e comprometidos com a causa é possível chegar à fase final da taça dos campeões africanos. Tendo ganho tudo este ano, há mais objectivos por superar neste seu projecto no Ferroviário?
Felizmente, no primeiro ano conseguimos chegar lá, mais difícil será nos mantermos no topo porque agora vamos jogar contra tudo e todos na tentativa de destronar o campeão nacional. A próxima época será ainda mais desgastante e vai exigir de nós muita atitude, muita concentração, acima de tudo, e, naturalmente, algum investimento por parte do clube porque estamos perante jogadores campeões. É preciso maior investimento, maior cuidado e fazermos a manutenção do plantel que conseguimos estruturar. Alguns jogadores despontaram, mas acreditamos na nossa competência, no nosso trabalho e que os dias mais difíceis vêm aí e precisamos de ultrapassá-los com competência e trabalho.
Depois de muitos anos no Costa do Sol, como viu o desempenho do seu antigo clube?
Não gostaria de analisar esse aspecto. Não posso, foram muitos anos naquele grupo de trabalho, há um sentimento de alguma tristeza, mas são ossos de ofício.
Bojan Sekicke acrescentou
qualidade ao nosso jogo
O Ferroviário surgiu na Liga com um jogador sérvio, Bojan Sekicke. O atleta jogou e fez jogar, tendo sido eleito o Jogador Mais Valioso do último jogo da final. Milagre Macome explica a contratação do atleta.
– Ao longo da época fomos notando que tínhamos algum défice naquela posição. Havia necessidade de tranquilizar aquela posição. Porquê? Porque é uma posição-chave no jogo de basquetebol. Costumo dizer que na minha estrutura de jogo o base e o capitão são a extensão do treinador dentro do campo. Então havia a necessidade de contratarmos um base e um extremo alto, um poste ou quatro. Infelizmente, não fomos felizes na posição 4, porque o jogador que contratámos não estava na sua melhor forma, estava no defeso, desgastado fisicamente e não pôde dar o seu contributo ao mais alto nível, mas o jogador-base foi o que se viu, acabou sendo MVP com toda naturalidade, apesar de ele ser um jogador europeu, sérvio, que veio encontrar uma outra realidade de basquetebol porque jogamos de forma extremamente diferente deles. Sentiu algumas dificuldades no início, mas acabou encaixando e percebendo como nós jogamos e foi um dos jogadores que comandou o nosso jogo, interpretou devidamente o nosso modelo de jogo e, felizmente, acabámos ganhando a competição. Bojan acrescentou muita qualidade ao nosso jogo.
Temos uma boa geração de masculinos
Milagre Macome defende uma maior atenção aos atletas masculinos de basquetebol porque podem fazer muito pelo país além-fronteiras. No seu entender, o país tem actualmente muitos bons jogadores.
– Tenho dito há vários anos que temos uma geração de jogadores masculinos extremamente competitiva, comprometida, mas os jogadores são maltratados, não são vistos como jogadores, mas como indisciplinados. Estamos a desperdiçar uma geração boa de masculinos, competitiva, demonstrou isso nos Jogos Africanos e nos campeonatos africanos em que participou. Essa geração é boa, é preciso valorizá-la, potenciá-la, olhá-la doutra forma porque nos pode trazer alegria dentro de pouco tempo.
Custódio Mugabe
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