Bula Bula,tal como Ernest Hemingway, acredita que toda a maldade começa em algo verdadeiramente inocente. É o que está a acontecer algures no interior deste meu belo país. E não é nada escondido. É à luz do dia e com o beneplácito de algumas pessoas que tinham e têm a obrigação de ver quando é que um rabo está escondido com o gato de fora…
Mas vamos por partes… Bula Bula, para ser honesto, quando viu aquela tabuleta (imagem anexa) no Aeroporto de Quelimane ficou meio na dúvida; não seria uma brincadeira de mau gosto? Ou o neocolonialismo (que alguns intelectuais da praça gostam tanto de elaborar sobre ele) estaria de facto de regresso?
Muitas dúvidas para uma só cabeça. Bom, consulta aqui, consulta ali, a verdade veio ao de cima: havia realmente rabo escondido com gato de fora. Reza a história que foi na segunda metade do século XVI que os portugueses estabeleceram no Vale do Zambeze uma nova instituição – os prazos da coroa.
Prazos eram unidades políticas onde a classe dominante era formada por mercadores portugueses estabelecidos como proprietários de terras, terras essas que tinham sido doadas, compradas e até mesmo conquistadas aos chefes locais. Ou, por outra, eram territórios concedidos por um período de três gerações aos mercadores portugueses e indianos. A transferência era feita por via feminina.
Portugal ao criar os prazos pretendia estabelecer bases para uma ocupação efectiva de Moçambique, garantindo a montagem da administração colonial. Porém, os prazos acabaram sendo essencialmente bolsas de escoamento de mercadorias (ouro, marfim numa primeira fase e de escravos numa segunda fase) que aproveitaram o rio Zambeze como via natural… em linguagem grosseira, os prazos eram lugares de escravidão… Sim, sim, os prazos têm uma ligação intrínseca com o colonialismo e com a escravatura.
O nosso povo não quer, nunca mais, ouvir falar em prazos e escravos. Tem muito más recordações desse tempo. Para nós é coisa do passado, por isso, como crianças fugimos “com o rabo à seringa”. Perdoamos mas não esquecemos – não vamos esquecer o tempo que passou, diz a canção popular.
Este intróito vem a propósito do tal cartaz publicitário que está em lugar bem visível na sala de desembarque do aeroporto de Quelimane, anunciando o retorno do prazo de Carungo. Quer dizer, anuncia como porta de entrada em Moçambique dos Prazos, Prazeiros, Colonos a Escravos à Província da Zambézia.
O cartaz diz que a bisneta do Prazeiro de Carungo regressou àquela região do país para “trazer a paz e a prosperidade para o Prazo Carungo e toda a comunidade que aqui vive há quase 30 anos em condições de pobreza extrema”.
O plano colonialista desta saudosista dos prazos e escravos vai mais longe quando diz no site da sua ilegal fundação o seguinte: “mais de 300 pessoas da comunidade do Carungo uniram-se para celebrar esta data tão especial da Nova Esperança para voltar a fazer prosperar as terras férteis do Carungo e concretizar o sonho do seu proprietário de plantar todo o terreno, susceptível de o ser!”
Maria Paula Neves do Prado de Lacerda, que saiu de Moçambique com oito meses de idade, logo após a proclamação da independência nacional, regressou ao país no dia 24 de Agosto de 2012, com 36 anos de idade, e reclama a devolução da parcela de terra que alega ser do seu bisavô no Carungo, Distrito de Inhassunge, o antigo Prazo Carungo. Segundo a visada, ela é a herdeira do referido prazeiro, Gavicho Salter de Sousa do Prado de Lacerda.
Essa parcela de terra já está a ser explorada por cidadãos nacionais desde 1977.
Bula Bulaficou com uma pulga na orelha. Poderá alguém celebrar o regresso de alguma pessoa que vem trazer resquícios de um passado tenebroso?
O mais intrigante é que o Governo da Zambézia e todas as suas estruturas, impávidos e serenos, deixam que o prazo de Carungo se reimplante. Rebelo de Silva já dizia que a terra, em que somos escravos, mesmo que seja da pátria, parece-nos mais só e vazia do que um ermo.
E deve ser mesmo isso porque já há cartas a denunciar a situação na Justiça. É que a coisa parece estar mesmo mal. Diz-se que a cidadã em referência, que se presume que tenha também a nacionalidade americana, pois está divorciada do seu marido, que era americano, com quem viveu cerca de 10 anos, deslocou-se a Moçambique em 2012, em gozo de férias, por 15 dias, e continua no território nacional… parece até que já tem Documento de Identidade e Residênciade Estrangeiros (DIRE).
Aproveitando-se da inocência das autoridades comunitárias locais, conseguiu convencê-las de que nunca tinha saído de Moçambique, tendo conseguido um documento, no Distrito de Inhassunge, através do qual está a tentar ter o título do Direito de Uso e Aproveitamento da Terra (DUAT) para, assim, poder ser titular das terras do antigo Prazo Carungo, que ela, numa atitude neocolonialista e de grande saudosismo, se vangloria ser bisneta do prazeiro.
Será que a população da Zambézia e do Carungo, em Inhassunge, quer o regresso dos prazos, dos prazeiros, dos colonos e dos escravos?
Não quero crer… como diz o sábio “todos querem ir para o céu, mas ninguém deseja morrer.”