Dércia Sara Feliciana ou, simplesmente, Deusa d’África, seu nome artístico, fala de si, da sua escrita e traz suas impressões sobre o panorama literário em Moçambique e na província de Gaza. É uma poetisa com raízes profundas na arte que se mostra capaz de reforçar o espólio literário nacional. domingo conversou com ela e traz o que pensa.
Quem é Deusa d´Africa? Onde nasceu? Cresceu? Estudou?
D.A: Deusa d´África é uma menina, é um rapaz, é uma mulher e é um homem, nascida a 5 de Julho de 1988, na Cidade de Xai-Xai, província de Gaza. Fez o ensino primário do primeiro grau na Escola Primária “Unidade 11” e o primário do segundo grau na escola de Tavene. Mais tarde, passei pela Escola Secundária e Pré-Universitária Joaquim Chissano onde conclui o ensino médio em 2006. De 2007 a 2010 frequentei o curso de licenciatura em Contabilidade e Auditoria pela Universidade Pedagógica na cidade de Maputo e, desde o ano passado, estou a frequentar o Mestrado em Contabilidade e Auditoria na Universidade São Tomás de Moçambique. Também sou Coordenadora Geral do Grupo Cultural Xitende com vários textos publicados na imprensa nacional e internacional. Sou igualmente autora de três obras editadas recentemente.
Que obras são essas?
O primeiro livro em poesia foi “A Voz das Minhas Entranhas” produzido pelo Fundo para o Desenvolvimento Artístico e Cultural (FUNDAC) e de dois últimos livros em poesia “Ao Encontro da Vida ou da Morte” e romance “Equidade no Reino Celestial” produzidos pela Editora de Letras de Angola.
Quando foi que você descobriu que queria seria poetisa?
A poesia sempre assombrou a minha vida, desde a minha cosmogonia. Nasci numa família de artistas, filha de uma mãe professora e responsável pela área cultural na educação, e um irmão escritor, portanto, fazer literatura nunca fora opcional para mim, mas sim, sempre foi uma educação familiar, cujo primórdio se enlaçara nas declamações de poesia começadas em 1994 ainda na primeira classe, na escola.
Com muitas diversões…
Não havia nenhuma festa e casamento no bairro que não fosse convidada para dizer poesia, tendo isso se tornado uma rotina normal dizer poesia de textos escritos por minha mãe ou pelo meu irmão Dom Midó e mesmo encenando na escola em datas comemorativas e em diversidade de tertúlias. Ainda na infância, já participava de saraus produzidos pelo Núcleo Literário Xitende na Casa Velha e era obrigada a ler obras literárias fornecidas por Dom Midó das Dores e Andes Chivangue.
E quando ocorre a consumação da escrita?
A consumação da escrita torna-se realidade em 1999, quando comecei a rabiscar os meus próprios textos, impressionada pela poesia da Noémia de Sousa. Fui crescendo em corpo e espírito, concedendo-me uma auto-confiança e, coadjuvada pelo pessoal do Xitende, comecei a publicar meus próprios textos na Revista Xitende em 2004.
Qual foi o seu livro favorito quando você estava crescendo e qual é o favorito agora?
Li muitos livros bons e marcantes, mas, o favorito quiçá, “Um Homem Liquidado” de Giovani Papini e “O crepúsculo dos ídolos” de Frederic Nietzsh.
Porquê?
Foram livros que, embora tenham sido lidos num momento em que tinha acesso a obras de vários autores interessantes, mudaram plenamente a minha visão e concepção do mundo, renasci depois da leitura desses autores…
E agora?
Actualmente tenho muitos livros e poucos livros favoritos, como “Pedro Páramo” de Juan Rulfo, uma obra que mexe com o meu arcabouço, “Divina Comédia” de Dante Alighieri, “Conversas na Catedral” de Mário Vargas Lhosa. Enfim, há muitos autores que gosto como William Faulkner, Alejo Carpentier, Jhon Toole, Gabriel Garcia Marquez, Charles Baudelaire, Arthur Rimbaud, Ferreira Gular, Drumond entre outros. Alguns de tanto me extasiarem leio e releio-os…
A ESCRITA
Como é o seu processo de escrita?
O processo da minha escrita começa como a chuva que ao olhar humano cai sobre a terra irrigando o solo, onde cresce o milho. Também assim se tece a minha escrita, obedecendo ao surrealismo, minha corrente favorita, nada em mim se planeia, tudo o que escrevo é o fruto da possessão que me toma e em minha boca se fazem todos os pensamentos possíveis como dizem os Dadaístas. A minha escrita não exige esforço, nem a racionalidade, tudo começa de uma forma natural, em que os dedos obedecem a voz do inconsciente que exerce uma função sobre o nosso comportamento humano, princípio defendido pelo psicanalista Sigmund Freud. Em mim se faz a voz de um homem que verga os seus em poemas sarcásticos, que descrevem realidades exacerbadas e relatam a nossa vida resgatando a liberdade de expressão ao vitimar a nobreza que é a nossa perdição infernal, há também a exaltação da morte que se faz em cada minuto que termina um sorriso num mundo em que a renascença de outra emoção depende da morte frequente e momentânea.
Qual é a concepção dos seus escritos?
Muitos dos meus escritos, foram concebidos como fruto do inconsciente indexado aos fenómenos naturais como a chuva, a guerra, a vida e a morte, que ocorrem no nosso meio tornando-se personagens vivas na minha escrita.
Qual o conselho que diria a alguém que está começar a escrever?
Diria que um grande escritor é um grande leitor. Na literatura, não há trapaceiras, não se constroem edifícios sem nenhuma engenharia. Se quer ser escritor, invista na leitura, conheça o mundo sentado na sua poltrona e aprenda a sonhar, um direito irrefutável para um leitor ou escritor.
Como surge “ Voz das Minhas Entranhas”?
Surge da colecção de diversos poemas concebidos como um feto nas entranhas de uma mulher e através de várias construções e, reconstruções foram se nutrindo o feto que crescera e se tornara homem, clamando pela vida, e tendo sido laureado uma Menção Honrosa no Concurso Literário Internacional “A Palavra do Século XXI” fez-se em mim a vontade de assumir o feto e partilhar este amor materno com o mundo.
Porquê?
Porque, quando uma mulher nasce um filho oferece-o ao mundo, o filho de uma é o filho de todos outros. Tendo submetido à apreciação do FUNDAC, tornou-se uma realidade a partilha deste livro com o mundo.
O seu livro está dividido em duas partes: “ Masmorra” e “ Fórmula da Morte”. Que significação têm essas partes?
“Masmorra” expressa sentimentos de reclusão em vários cenários como a guerra entre o homem e a natureza, o amor que é sucedido pelo adultério, a lascívia e violência contra a mulher, a nossa musa, a existência humana associada a religião que adverte o que há no primórdio e no fim, e o caminho que percorrem as nossas artes, em que o futuro é incerto, vivemos para colocar o pão em todas as mesas e em todas as manhãs, mas não colocamos o livro na mesma mesa. A “Fórmula da morte” expressa a esperança por se tecer antes e após a morte, construindo cenários que possam impactar a vida.
Que concursos já conquistou e que significação tiveram para si?
Recebi o prémio como melhor declamadora na escola primária em 1997. Em 2011, no mês de Maio, recebi Prémio Destaque Literário pelo poema “São e Vão” e pelo livro em poesia “A Voz das Minhas Entranhas” no Concurso Literário Internacional “A Palavra do século XXI” lançado na República Federativa do Brasil. Em Maio de 2012, recebi o prémio como Vencedora Absoluta na modalidade de poesia, recebendo também o Prémio de Destaque Literário em diversos poemas e num conto no Concurso Literário Internacional “A Palavra do século XXI” lançado na República Federativa do Brasil. Em Outubro de 2012, recebi o Prémio Destaque Literário a contos no Concurso Literário Internacional “A Palavra do século XXI” lançado na República Federativa do Brasil.
O que representam os prémios para si?
Sempre transmitem emoção e reconhecimento, o que desperta a atenção de quem os recebe, motivando a produzir mais e iluminando a luta sempiterna em busca da luz e do perfeccionismo – essa fobia que herdei dos nossos ancestrais reis africanos, o Rei Tchaka.
GRUPO XITENDE
Fale-nos do projecto da Associação Cultural Xitende?
O Xitende opera em Gaza como Associação Cultural desde 2011, em parceria com a Casa Provincial de Cultura, onde se encontra sediada, anfitriã das realizações desta agremiação. Tem realizado Noites de Poesia de periodicidade mensal, criando trocas de experiências com artistas de diversas gerações que tem sido convidados aos saraus para transmitir o seu testemunho no mundo artístico e conviver com a sociedade Gazense.
Especificamente o que faz?
Tem realizado semanas literárias e oficinas de escrita onde se discutem assuntos literários. No âmbito das comemorações do Dia Mundial do livro, realizou uma marcha pelo livro sob o lema “O Livro Como o Único Veículo para Educar”. Promove concursos interescolares de poesia como forma de prover a leitura e a divulgação de literatura moçambicana, resgatando potenciais escritores. Realiza palestras falando de benefícios da leitura e da função do livro nas escolas e possui um clube de leitores constituído por membros do Xitende e de outros em que se lê obras literárias e se discute em grupos.
E do ponto de vista de publicações?
Tem produzido uma revista onde são publicados os autores locais, e produziu em parceria com o Clube de Escritores e Amigos de Niassa uma Antologia financiada e impressa pela Editora de Letras em Angola, ainda por lançar neste ano.
Que perspectivas se pretendem do projecto desta Associação?
Promover a Cultura em Gaza como uma forma de contribuir para o desenvolvimento da cultura nacional, entretendo de forma educativa a população mas também evidenciando o poder que o livro tem na vida de um homem.
Já se reflectiu numa Associação Cultural Xitende mais abrangente a outros pontos de Gaza e mesmo do país?
Sim, o Xitende tem representações em Maputo, e em alguns pólos de da Província como Chókwê, onde realizamos saraus culturais esporadicamente, porque a arte não é para os artistas mas sim para o povo, e onde está o povo, também necessitamos de ir exibir a nossa arte.
Que leitura faz do actual cenário literário em Moçambique e na província de Gaza?
Em Moçambique o actual cenário literário ainda se encontra aquém do desejável pois ainda é feita por grupinhos para grupinhos, falta a união e concepção da literatura como uma bandeira única para todos independentemente da faixa etária, geração ou localização. Falando concretamente de Maputo, nossa capital, há que confessar que a literatura está sendo feita de literatos para literatos, desviando-se o percurso das artes que deviam ser canalizadas a quem são de direito, a sociedade inteira, notando-se um sentimento de regionalismo ou tribalismo implantado no nosso país ou capital, como preferir! Há os que se dedicam a dar as caras aos mídias para vituperar esta geração alegando pertencerem a outra geração melhor. Esquecem-se que, em todas as gerações, o país não conseguiu criar referências literárias, e muito menos sobressair na diáspora.
Que implicações isso traz?
Perde-se tempo em busca de refúgios geracionais e não para investir na busca da solução deste problema de se ter procriado uma literatura fracassada em todos os tempos.
E em Gaza? Como vai o movimento literário?
A literatura está de boa saúde em Gaza. As escolas, universidades, e a sociedade em geral são o baluarte das artes e sobretudo de todos os programas realizados em prol da literatura. Entretanto, é tempo de dizer que a sociedade tem disponibilidade para cooperar com os artistas, mas, o que falta são políticas de promoção cultural claras que coloquem no zimbório as artes moçambicanas. Esse é um desafio imposto para um Ministério da Cultura funcional, órgão responsável pela criação de planos estratégicos, políticas de promoção das artes, celebração de memorandos com outros ministérios para a promoção da literatura nas escolas e incentivar a leitura, um assunto sério que compromete o futuro de uma geração inteira.
Como pensa que se pode estabelecer uma melhor sincronia entre a nossa oralidade e literatura?
Registando os factos históricos como uma forma de preservar a oralidade, fazendo com que a literatura seja o resultado do conhecimento profundo da oralidade, o berço da nossa história. Temos um património cultural bastante avultado na oralidade, faltam acções que sincronizem esses dois elementos. Falta a vontade em nós de fazer viver os nossos contos, as nossas lendas para todo o sempre, falta a essência, politicas de preservação da nossa história. Enquanto isso não acontece vamos dormindo, e deixando morrer a nossa identidade, contudo, amanhã seremos outro povo.
Texto de Artur Saúde