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Dança que convoca ao amor

Por admin

Texto de Maria de Lurdes Cossa e Fotos de Jerónimo Muianga
Que lance a primeira pedra quem achar que pode resistir à destreza e exotismo do menear dos corpos na dança do tufo. Quando em tempos distantes, ainda que não distanciados, o Sulfanato de Angoche Hassane Issufe se radicou em Nampula, poucos se terão apercebido que começava ali o retrato da vida quotidiana e da misteriosa beleza da mulher moçambicana.

Nos primórdios do seu
surgimento, o tufo era
mesmo uma dança especificamente
religiosa,
de louvor e praticada
apenas por mulheres rigorosamente
seleccionadas. Hoje, mais
do que os louvores à religião muçulmana,
retrata outros horizon-tes e tem uma identidade própria.
Exige muita ginástica, destreza e
jeito. Continua preservando valores
culturais, desde a maneira
como é praticada, os locais onde
é dançado à indumentária (que
compreende capulanas, brincos
e anéis, lenços que representam
a beleza da mulher). Lá do litoral,
a dança “emigrou”… e foi nessa
aventura que o tufo escalou Mafalala.
O bairro mítico.
Mafalala é um bairro simbólico
da periferia da Cidade de
Maputo. Um conjunto de casas
de madeira e zinco, ruelas demarcadas
por chapas que servem
de muros das seculares casas.
É também o berço de figuras
da literatura, música, das artes
plásticas, do futebol e da política
moçambicana.
Naquele bairro pratica-se
turismo urbano. Pessoas de diferentes
pontos do mundo fazem
tours para conhecer o lugar que
viu crescer, viver e conviver
nomes que escrevem a História
deste país. É um mundo a parte.
No entanto, nem tudo é um
mar de rosas por ali. O bairro
ainda debate-se com problemas
de segurança e saneamento do
meio. As valetas que deviam ser
canais de escoamento de água
tornaram-se depósitos de lixo.
Uma dura realidade com a qual
os moradores se têm debatido no
seu dia-a-dia e tão pouco sabem
quando chegará ao fim.
TUFO NA MAFALALA

Mafalala é um dos poucos lugares
em Maputo que abriga grupos
que se dedicam ao Tufo.
Pelo que nos contam, as agremiações
são constituídas por mulheres
macuas. São as “muthiana
horera”, o mesmo que “mulheres
bonitas”.
Naquele bairro, que encrusta
mitos e narrativas de glória, encontramos
grupos como Tufo da
Mafalala, Associação Unida, Tufo
Maninhas da Mafalala, Tufo Associação
Moçambola, entre outros.
Todos assomam por uma grilheta
comum: manter a tradição
e sobretudo convocar à moçambicanidade
e à auto-estima.
O enigmático mussiro, uma
pomada extraída de uma raiz que
as mulheres aplicam na face e no
corpo e que torna a pele macia e
suave, marca de forma indelével a
beleza da mulher, rivalizando com
os trajes coloridos, capulanas,
lenços, blusas e enfeites como
cordões, anéis e pulseiras de
ouro. Enfim, um ritual que marca o
início de uma epopeia rítmica que
embalsama corações e convoca
ao amor.
Com uma coreografia de embalar
até ao mais pedernido
coração, as mulheres perfilam-se
em função da sua estatura e dão
largas à destreza e exotismo do
menear dos corpos. É simplesmente
contagiante.A curiosidade em saber como
as praticantes do Tufo conseguem
manter a sua tradição distante da
província de origem levou a nossa
equipa de Reportagem à Mafalala.
No local, tivemos uma conversa
com um dos grupos: o Tufo da
Mafalala.
O grupo é constituído por 20
mulheres, três batuqueiros liderados
pelo entusiasta Momade Matano
Saíde. A sua fama ultrapassa
fronteiras porquanto já se encarregou
de organizar recepções a
figuras nacionais e internacionais
em grandes cerimónias.
“O grupo existe há mais de
50 anos e foi criado por Matano
Saíde, meu pai. Nos primeiros
anos de existência, a dança
era praticada por homens e o
meu pai era um deles”, afirmou
Momade Matano Saíde.
Conforme explica , com o decorrer
dos anos viu-se que a figura
da mulher desempenhava melhor
o papel na dança Tufo e passou-
-se a apostar nela. A beleza dessa
classe e a vaidade proporcionam
mais brilho e atractividade ao tufo.
As integrantes do grupo provêm
de diferentes partes da província
de Nampula. Umas são da
Ilha de Moçambique, outras de
Angoche, Nacala-Porto e ainda
Cidade de Nampula. Sendo que a
maior parte ingressou no Tufo da
Mafalala nos anos 90.
Os ensaios do grupo, que duram
duas horas, são realizados na
casa do líder, Momade Saíde, às
quartas, quintas, sextas-feiras e
aos sábados.
Neste processo, as mulheres
vão interpretando alguns temas
com mensagens referentes ao
amor, infelicidade, crítica social,
política, solidariedade, entre outros.
Zaquia Rachid, rainha do grupo,
é quem escreve as belas músicas
que acompanham as danças
“ondulantes” das “muthianas”.
Começou a praticar a dança Tufo
aos 7 anos de idade, em Nampula.
Afirma que cada tema de que
se fala nos temas tem de ser
particularmente gesticulado para
dar ritmo à dança, daí a razão de
gingados específicos. “Nós temos
de gingar, pois essa dança pede
isso. É necessário mexer bem
a cabeça, cintura e braços de
forma a torná-la mais atractiva”,
afirma.
Zaquia ingressou no Tufo da
Mafalala em 1999 a convite do líder
do grupo, por sinal seu esposo.
Segundo ela, que tem a missão de
coordenar todos programas com
as suas companheiras, “Tufo é
uma dança que vem do sangue
e quando não praticámos não
nos sentimos bem.”
Aquelas mulheres também
dançam M´sope e Massepwa,
danças igualmente oriundas da
província de Nampula. A ideia é
valorizar um pouco daquilo que
lhes é característico.
Por conta disso, o grupo tem
recebido e actuado para diversos
turistas. No dia em que a nossa
equipa de reportagem se fez ao
local, por exemplo, encontrou um
casal de europeus que apreciava e
animava-se com as suas brilhantes
actuações. Estava acompanhado
por guias da associação IVERCA,
uma organização que anualmente
organiza um festival na Mafalala
com o intuito de promover o
turismo, as potencialidades locais
e os artistas que residem naquele
bairro.
Segundo Momade Saíde, aquelas
visitas têm sido frequentes. “É
normal numa semana recebermos
durante três dias turistas
de diversos cantos. Muitas
vezes costumam deixar-nos
um valor simbólico, de tanta
satisfação.
KULAYA, OUTRA
FACE DA MOEDA

Para além de se dedicarem às
danças atractivas, as “muthianas
horera” têm sido solicitadas,
com frequência, para trabalhos
de aconselhamento. Trata-se de
cerimónias feitas só na presença
de mulheres, onde estas adquirem
conhecimentos sobre como ter
um lar feliz.
Apenas podem participar nas
“palestras” mulheres que já iniciaram
a prática da actividade
sexual. Podem ser jovens solteiras,
casadas ou que estejam para
casar, e até mesmo adultas.
Segundo a rainha do grupo,
Zaquia Rachid, “existem muitas
pessoas casadas que infelizmente
não sabem como se
comportar no casamento. Não
sabem como cuidar devidamente
dos seus lares. Daí os
serviços de aconselhamento”.
Questionámo-la o que ensinam
e como o fazem. Sorriu de
forma matreira:“há coisas que
não podem ser ditas aqui.”
E acrescentou: “apenas posso
dizer que muitas mulheres,
sobretudo do Sul, procuram
esses serviços.”
Face à nossa insistência, acabou
nos revelando: “mostramos
como é que devem cuidar dos
seus homens e o que fazer
para ter um lar “mil estrelas”.
Muitas pessoas dizem que as
nampulenses são perigosas,
mas na verdade não somos perigosas,
apenas sabemos fazer
bem as coisas”, disse a nossa
interlocutora.
Quando solicitadas para fazer
aconselhamento, as “muthianas”
exigem um determinado “cachet”,
capulanas e garantia de refeição.
Passam todo dia com a cliente de
forma a transmitir todos conhecimentos,
da maneira mais simples
possível e alegre.
Zaquia afirma ainda que não é
proibida a vinda de convidadas da
pessoa que busca aconselhamento.
No entanto, estas não podem
assistir às aulas sem efectuar um
pagamento, uma vez que “trata-
-se de segredos da vida a dois
e não é justo alguém pagar sozinha
e as outras virem ganhar
às suas custas.”
São estas “muthianas” que ao ritmo
e som de melodias melosas,
rebuscam na destreza e menear
provocante dos ventres a mensagem
do quotidiano e da convocatória
à moçambicanidade.
Ainda que rivalize com
os tentáculos perigosos da
globalização, que trazem a
dança contemporânea como
altiva e senhora das transformações
sociais, o tufo vai
fazendo o seu papel secular:
o de transmitir oralmente,
de geração em geração, os
efeitos da miscigenação cultural
e, sobretudo, da razão
do ser moçambicano. Aliás, a
Organização das Nações Unidas
para a Educação, Ciência
e Cultura (UNESCO), como
reconhecimento do seu valor
sociocultural e não só, “pisca”
o olho para a ratificação natural
do tufo como património
cultural da humanidade, pois
é reiteradamente unânime
a sua importância cultural
para Moçambique e para a
humanidade.
DIFÍCIL TAREFA DE
MANTER O GRUPO

Manter um grupo com mais
de 50 anos de existência não
é tarefa fácil. Muitos desistem
pelo caminho e caem no esquecimento.
Ao que tudo indica
essa dura realidade é combatida
pelo Tufo da Mafalala.
“O segredo é a união, gosto
pela dança e constante recepção
de pessoas que querem
fazer parte do grupo. Já
passaram pelo grupo várias
pessoas que com o decorrer
dos anos foram ficando impossibilitadas
de continuar
a dançar por vários motivos”,
explica Momade Saíde.
Em contrapartida sempre
inscreviam-se outras pessoas
interessadas em fazer parte do
grupo, isso contribuiu para que
o mesmo perpetuasse até aos
dias que correm.
Segundo Momade Saíde, já
foram integrantes no Tufo da
Mafalala algumas mulheres do
Sul que, no meio do percurso
desistiram, pois não aguentaram
com a rotina. “Não vamos
pela etnia das pessoas. O
único requisito que exigimos
para que as pessoas façam
parte de grupo é saber
dançar, pagar 500 meticais
de inscrição, e mensalmente
contribuir 100 meticais
de membro para o fundo do
grupo”, disse.
Entretanto, o grupo tem tido
dificuldades para encontrar
crianças, adolescentes e jovens
interessados na dança. “A inserção
deles não é fácil devido
aos programas que têm no
seu dia-a-dia. Se estivéssemos
em Nampula seria fácil
porque lá as crianças muito
cedo começam a dançar”,
afirma Momade Saíde.
Este facto constitui um problema
pois, nem sempre poderão
ter pessoas adultas para
praticar a dança. “Receamos a
continuidade do grupo devido
à idade dos que estão hoje
no activo.”
No decorrer da conversa,
ficamos a saber que o Tufo da
Mafalala infelizmente não tem
patrocínio. Para o seu sustento
depende apenas das rendas de
seus eventos.
O dinheiro das actuações é
usado para comprar material
como batuques, capulanas, bijutarias,
entre outras necessidades.
“Mandamos fazer os nossos
batuques na Ilha de Moçambique
e isso acarreta custos,
na medida em que temos
que pagar o transporte de lá
até Maputo, bem como a mão-
-de-obra.”
No entanto, o grupo não se
queixa de falta de eventos. “Temos
sido solicitados frequentemente
para cerimónias de
singulares e não só, o que faz
com que estejamos sempre
com a agenda preenchida”,
explica Momade Saíde.
Tufo da Mafalala já actuou na
vizinha África do Sul e participou
igualmente no segundo Festival
Pan-africano, na Argélia.
Recentemente, Zaquia Rachid
esteve na Itália para participar
do Expo de Milão, acompanhada
de um grupo do Ministério da
Cultura e Turismo.
ORIGEM DO TUFO
É uma dança de origem
árabe, ligada à religião muçulmana,
que pode ser praticada
em cerimónias, festas e datas
específicas do calendário islâmico.
Ela tornou-se vulgar na
região nortenha do país, mais
precisamente no litoral das
províncias de Cabo Delgado,
Nampula e Zambézia. É uma
dança essencialmente feminina,
na qual os homens apenas
participam como instrumentistas.
Todavia, há casos em que
os grupos são compostos só
por mulheres.
Participam na dança principalmente
mulheres adultas
e é estabelecida uma hierarquia,
cujo topo é ocupado por
uma rainha. Um dos critérios
adoptados para a sua escolha é
a graciosidade e beleza das linhas
do rosto e do corpo, assim
tomadas para simbolizar a feminidade
da mulher makhuwa.
Na dança tufo, o rigor no traje
e nos adornos são fundamentais.
As mulheres e as raparigas
usam um uniforme formado por
capulana, blusa e lenço, quase
sempre de cores garridas.
As capulanas são amarradas à
cintura, uma por cima da outra,
cobrindo as pernas.
MÃES DE FAMÍLIA
Durante a conversa, as “Muthianas”
revelaram que a dança
está dentro delas. E ficar sem
praticá-la é quase impossível.
Destacam ainda que é bom dançar
pois é uma forma de mostrar
que não é possível esquecerem
a tradição. No entanto, isso
não significa que a vida delas
termina por aí; têm família por
cuidar, são esposas, e mães.
Umas são domésticas, outras
comerciantes e outras com
emprego formal. Por conta disso
a rotina delas não é fácil, mas,
mesmo assim, sabem muito bem
tomar “conta do recado”.
Isabel Jamal, doméstica, é
integrante da agremiação há
mais de um ano. Iniciou-se na
dança na província de Nampula
ainda criança. Conta que descobriu
a existência do Tufo da
Mafalala quando chegou a Maputo
e, como gosta de dançar,
não hesitou e correu para inscrever-
se. “Fazer parte deste
conjunto é sem dúvida uma
imensa alegria. E o melhor
de tudo é ter o apoio do meu
marido. Quando saio dos ensaios
volto para casa e faço
os meus deveres”, afirma Isabel
Jamal.
Quem também partilhou um
pouco da sua paixão pelo tufo
é Maria do Céu, 42 anos, mãe
de três filhos. Faz parte do grupo
há quatro anos e conta que
esses anos têm sido de muita
alegria, pois “somos todas
unidas.”
Fora do Tufo, Maria do Céu
é trabalhadora na Farmácia
do Centro de Saúde do Alto
Maé. Maria do Céu conta com
a compreensão dos colegas
do serviço para participar das
apresentações do seu grupo ao
meio de semana, pois algumas
vezes tem saído antes da hora
Momade Saíde, membro e responsável do grupo de saída.

Maria de Lurdes Cossa
mariadelurdescossa@gmail.com
Fotos de Jerónimo Muianga

 

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