Engana-se quem pensa que cegueira é sinónimo de improdutividade, insucesso, solidão, ou, numa só palavra, frustração. Na verdade, se a maioria enxerga através da visão, há também casos de pessoas que superam a cegueira e trilham o caminho do sucesso. O músico Rafael Bata é um deles.
Irmão mais novo do também músico moçambicano João Bata, Rafael sofreu aos 18 anos de idade um acidente que lhe custou a perda total de visão, enquanto cumpria o serviço militar, na província de Gaza.
Entretanto, por força interna, apoio de familiares e amigos, o artista conseguiu refazer-se. Hoje é um músico, locutor na Rádio Muthiana e estudante de jornalismo. Por conta disso, nossa equipa de Reportagem procurou-lhe e esse na maior tranquilidade e super descontracção, desmistificou esse sucesso.
Nascido em 1967, Rafael, que logo demonstrou ser uma pessoa muito alegre e que não se acanha começou por revelar que antes da música, a rádio é a sua grande paixão desde criança, por isso hoje exerce a profissão de locução.
No entanto esse sonho ficou nalgum momento balanceado, tudo porque quando ficou cego já não acreditava que fosse possível exercer a sua paixão de infância. Bata conta que em 1988 foi viver na Beira para estudar o sistema braille, no Instituto Nacional de Deficientes Visuais, teve a oportunidade de interagir com vários colegas semelhantes a si dos quais um foi a fonte de sua esperança.
Quando estava a estudar na Beira conheci um colega que apesar de também ser deficiente visual como eu, fazia locução sem nenhum problema. Aquilo foi como encontrar “uma luz” onde já não havia muita esperança de vê-la, pois com ele pude acreditar que ainda podia realizar meu sonho e que o facto de ter ficado cego não implicava que o mundo se tinha acabado, disse.
Luta pelo sonho
Mais tarde Rafael Bata regressou a Maputo, local onde nasceu, para procurar emprego. Isso não chegou a concretizar-se porque nunca era admitido. Com isso, não ficou a lamentar-se pelos cantos, arregaçou as mangas e lá foi atrás da realização do seu maior sonho.
Pouco tempo depois tive oportunidade de passar a colaborar em alguns programas radiofónicos. Não trabalhava como locutor, apenas enviava alguns materiais para certos programas,afirmou.
Em 2010 veio-lhe então a sorte grande. Uma estação radiofónica chamou-o para trabalhar e até hoje lá está. Segundo conta, esse acontecimento foi muito importante uma vez que representava a sua inserção no mundo que sempre sonhou em estar.
Omelhor nisso é que as pessoas com as quais trabalho são muito boas. Sempre se mostram dispostas a me ajudar. Não consigo manusear computador entre outros instrumentos que compõem um estúdio e elas fazem-no por mim, disse.
Actualmente, Bata está a frequentar o primeiro ano do ensino superior na área de jornalismo. Segundo conta, a emissora para a qual trabalha é que criou condições para que isso acontecesse. Depois de concluir a 12ª classe em 2011 manifestava sempre a vontade de continuar a estudar, mas não conseguia e hoje que tenho essa oportunidade tento agarrá-la.
Tenho tido ajuda dos meus colegas
Fomos a Escola de Jornalismo, local onde estuda Rafael Bata. Lá constatamos que ele usa material adequado para pessoas portadoras de deficiência visual. Trata-se de uma máquina de escrever de sistema braille, e um gravador para que possa ouvir as aulas em casa e transcrever os apontamentos que, por vezes, passam despercebidos durante as aulas.
Bata é um aluno simpático e circundado de boas amizades. Ali todos se preocupam com o seu bem-estar. Como a máquina que usa para escrever é pesada não a leva para casa e todos dias são os seus colegas que a carregam para sua carteira.
Tenho tido a ajuda de quase todos colegas, eles sempre se disponibilizam a ajudar.Quando nos dão fichas e não tenho um colega que leia para mim levo-as para casa e lá tenho ajuda de uma grande companheira, minha esposa, afirmou.
Por outro lado, ficamos a saber que o nosso interlocutor quando tem trabalhos de investigação vai sempre a biblioteca com os seus colegas e esses é que leem os apontamentos para si. Já os testes faz todos oralmente desde que recomeçou a estudar.
Já não teimo andar sem companhia
No que concerne ao seu dia-a-dia, Rafael Bata diz ser normal como de outros pois procura não se deixar abater. Sai de casa para a escola, serviço, entre outros locais, sozinho.
O nosso interlocutor conta que depois de ter voltado da Beira a sua família não lhe deixava andar sozinho, pois temia que algo de mau lhe acontecesse nas estradas. Esse facto fez com que Rafael perdesse a habilidade de andar sozinho como fazia na Beira, até o dia em que sentiu a necessidade de fazer as coisas por si.
Nos dias em que tivesse certos programas era ele quem indicava o caminho as pessoas que o acompanhavam. Então disse para mim mesmo que do mesmo jeito que indico a direcção às pessoas também podia o fazer sozinho. Daí passei a fazer tudo sozinho.
Para Rafael Bata andar acompanhado era bom, mas criou em si medo de andar sozinho, facto que o fazia muito dependente e até condicionava algumas coisas.Eu já estava a ficar muito limitado, mas há 3 anos tomei a decisão de que passaria a caminhar sozinho e sinto-me bem assim. Foi até difícil minha família aceitar mas fi-la compreender a importância disso para mim” salientou.
Refira-se que quando sobe um chapa trata logo de dizer onde quer descer aos transportadores, de modo a evitar passar a sua paragem.
Parei um pouco com a música
O músico e autor do álbum intitulado “Tandza la xikhova” (Ovo de mocho) parou, actualmente, a sua carreira artística com vista a se dedicar mais aos estudos. Entretanto garante que voltará assim que for possível.
Rafael Bata já ganhou o prémio de “melhor voz masculina” no Ngoma Moçambique, em 2005, representou Moçambique em certos festivais decorridos na vizinha África do Sul e na Suazilândia.
É casado e nos seus tempos livres gosta de tocar instrumentos como guitarra, piano e acompanhar telenovelas (segue os personagens pelas vozes, o que lhe ajuda a identificar as pessoas).
É uma honra tê-lo como colega
– afirma Ivone Fraiza, colega e amiga
Na Escola de Jornalismo, domingo ouviu uma colega de Rafael Bata, que começou por classificá-lo como sendo uma pessoa atenta e que quando tem dificuldades procura se aproximar com vista a obter ajuda.
“É uma honra tê-lo como colega. Não demostra ser deficiente e porta-se como qualquer um de nós aqui na sala, isso é muito bom. No início do ano era acanhado mas actualmente é uma pessoa muito aberta, conversa normalmente e conta novidades”, disse Ivone que também saúda os docentes por tratarem bem o seu colega e procurarem sempre ditar os apontamentos, tendo em conta a deficiência dele.
Sistema braille
O Sistema Braille é utilizado universalmente na leitura e na escrita por pessoas cegas. Foi inventado na França por um jovem cego, Louis Braille, para a educação e integração dos deficientes visuais na sociedade.
O sistema Braille tem-se adaptado a todas as línguas e grafias. Com a sua invenção, Luís Braille abriu aos cegos as portas da cultura, arrancando-os a cegueira mental em que viviam e rasgando-lhes horizontes novos na ordem social, moral e espiritual
Dispondo de um processo fácil de leitura, o gosto pelos livros estendeu-se amplamente entre os cegos e ocupou um lugar importante na sua vida. À instrução oral sucedeu a instrução pelo livro. O conhecimento intelectual, sob todas as suas formas (filosofia, psicologia, teologia, matemáticas, filologia, história, literatura, direito, entre outros), tornou-se mais acessível aos cegos.
Maria de Lurdes Cossa
Fotos de Carlos Uqueio