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Joguei futebol para fintar a fome

Por admin

Paulo António Sualé Trigo (Paulito) começou a jogar futebol no Namutequeliua. Jogou pelo Maxaquene, Costa do Sol e clubes sul-africanos. Vestiu as cores da bandeira nacional durante dez anos. É do quadro do Jomo Cosmos, na África do Sul, onde é comentador desportivo no canal Super Sport.

 

A conversa a seguir teve lugar num dos hotéis de Maputo, onde abordámos com o antigo jogador o seu passado e presente.

O normal é ouvir que aquele antigo jogador moçambicano virou alcoólatra, sem o que comer nem onde dormir. O seu caso pode-se considerar bom exemplo?

Olha, a pessoa tem de se valorizar um pouco. Quando és jogador no activo, és ao mesmo tempo um mendigo beneficiado, porque toda a gente te paga o que queres. Quando já não jogas, o pouco que tens acaba na cachaça. É só beber sem se alimentar adequadamente. Eu sempre evitei meter-me em coisas más. Não bebo e nem fumo. Eu joguei num tempo em que ver um colega a fumar soruma na véspera de um jogo era normal. Ninguém se escondia.  

Grandes jogadores?

Eu costumo dizer aos meus amigos que um gajo que veio da pobreza, um dia voltará à pobreza, mas tem de voltar com dignidade. Nós não viemos para Maputo para ficar ricos. Um dia vamos ter de voltar pobres, mas com essa dignidade. Há colegas que deixam muito a desejar.

Parece que jogou futebol ocasionalmente. Estou enganado?

Não. Eu joguei futebol para fintar a fome, a pobreza. Eu não gostava de futebol, apesar de ser talentoso. Saí dos iniciados para os juniores. Em Nampula não havia iniciados. Eu como júnior já tinha direito a um prato de arroz e feijão no clube, no Namutequeliua. Levava o prato para casa onde dividia a comida com os meus irmãos. Os meus pais andavam separados. Com talento, dedicação e sorte acabei chegando onde cheguei. Na altura, a ambição do jogador provinciano era vir para Maputo singrar. Muitos tentaram, mas ficaram pelo caminho. Eu vinha duma família pobre do bairro de Namutequeliua. Tinha de dar o litro para dar de comer aos meus irmãos. O meu pai era um juiz alcoólatra, o que lhe fez perder a vida. Com a minha mãe solteira e irmãos desempregados, tive de me redobrar. Era o segundo filho mais velho da casa.

Foi difícil a sua integração no ambiente futebolístico de Maputo?

Como sénior só joguei seis meses pelo Namutequeliua. Em Maputo tive de enfrentar “guerras” porque vinha da província. Tinha de me enquadrar naquela verdadeira metrópole, que era Maputo. Não é como hoje que há equilíbrio. Vim para aqui numa altura de muitas barreiras.

Veio directamente ao Costa do Sol?

Vim para o Maxaquene, ainda júnior. Joguei com Macamito, Mabui, Cláudio, Maló e Nuro (o avançado). O treinador era Nelson Mafambane. O grupo de trabalho não era bom. Então, por influência dos meus amigos, conterrâneos, casos de Rui Évora, Abudo e Babai fui para o Costa do Sol. Fiz um ano em cheio. No ano seguinte lesionei-me. Depois passei para o Ferroviário de Maputo, onde com Arnaldo Salvado construímos uma boa equipa, com Arão, Baute, Pinto Barros, depois veio Tomás, Eurico, Vino, António e Mavó, numa altura em que o Costa do Sol tinha a hegemonia no futebol nacional. Destruímos a hegemonia do Costa do Sol. Fizemos coisas boas, mas o presidente do clube, Matabele, pensava curto, pois começou a livrar-se dos bons jogadores a preço de banana.

E você partiu para a África do Sul. Foi boa escolha?

Se pensasse em ir a Portugal para jogar pelo Setúbal, estaria enganado. Seria desgraça.  Zainadine quando saiu para a China já podia jogar em qualquer clube de Portugal. Hoje já sei muito de futebol. Na altura eu escolheria jogar pelo Académica de Viseu que pelo Orlando Pirates, porque pensaria que ia trazer de Portugal boas jeans, uns óculos diferentes. Os putos de hoje não nos querem ouvir a passar-lhes a experiência que adquirimos. Querem ilusão.

Quando saiu daqui para a África do Sul, que perspectiva tinha?

Cheguei num clube, Maning Rangers, com bom ambiente e o meu plano era dar um pulo, dada a exposição internacional do futebol sul-africano. Não tem tanta qualidade, mas tem muito de marketing, é visto em qualquer parte do mundo. Esperava que fosse dar um pulo para a Europa. Talvez por ter estado em Durban, no Maning Rangers. Era franzino e os europeus procuravam jogadores robustos. Fiquei lá cinco anos. Depois o clube entrou em problemas financeiros e desapareceu. Quando fui para Joanesburgo já era tarde e já não era o mesmo jogador.

Mas como foi para a África do Sul? Entendeu sair, ou foi convidado?

Fui visto nos torneios da COSAFA, onde ganhava muitos títulos. Fui visto na Zâmbia, no Torneio COSAFA, por um treinador branco que conhecia o empresário Sérgio Simão (falecido). Fui o primeiro jogador em que na contratação para fora Sérgio Simão meteu o dedo na negociação com o Ferroviário de Maputo. Não foi por aventura. Aliás, se não temos muitos jogadores nos clubes estrangeiros é porque não somos aventureiros como os nigerianos… Os nossos putos não se aventuram em coisas boas, senão em bebedeiras, lá na Mafalala. Com um pouco de aventura teríamos jogadores por todo o mundo e isso ia alavancar o nosso futebol.

A sua carreira atingiu o apogeu ou você passou ao lado de uma grande carreira?

Fiz uma boa carreira para o consumo interno. O jogador moçambicano é para consumo interno. Fui da selecção dez anos, mas podia ter usado a selecção para dar um pulo maior. Internamente fiz uma boa carreira, fui capitão da selecção com Viktor Bondarenko durante dois anos. Com um pouco de sorte teria dado um pulo maior logo que vim para Maputo quando tinha dezasseis anos. Mas, Comecei a fazer futebol muito cedo. Não sei fazer mais nada. Só sei fazer futebol.Eu cresci a fazer futebol. A minha mãe dizia-me vai à escola, mas eu preferia futebol. Não se riam de mim quando digo que só sei fazer futebol. Nunca direi que sou mecânico quando só seifazer futebol

digo-lhe uma coisa, foi melhor ter feito essa carreira, do que se tivesse ido a Portugal para jogar para um Morreirense e receber umas quinhentas, iludindo as pessoas que estaria a viver bem. Hoje na África do Sul vejo miúdos a pularem para a Europa onde vão jogar em clubes grandes, alguns deles que passaram por mim na sua formação. É o que nos falta.

 

Quando deixou de jogar pulou para a carreira de treinador. Valeu?

Eu deixei de jogar porque me lesionei. Tinha contrato com o Mamelodi  Sundowns de três anos, mas só pude jogar um ano e meio.  Fui para um torneio anual na Correia do Norte onde contrai uma lesão num jogo contra o Boca Juniors. Fiquei com hérnia desportiva. Tinha trinta anos. Não consegui dar a volta. Nunca me arrastei nos campos. Fui com a selecção à Namíbia, com o treinador Artur Semedo. Perdemos 3-0 e eu comecei a faltar aos trabalhos da selecção. Eu gostava de dar o litro no campo. Quando me apercebi que estava acabado, retirei-me. É por isso que não andei em clubes da segunda divisão. Meti-me na Super Sport, o que me ajudou para não me arrastar. O Sundowns pagava-me sem jogar, então disse aos tipos para que me pagassem dois ou três para que eu fosse embora para não estar todos os dias no clube sem fazer nada. Há profissionais de verdade que andam por aí sem destino.

PESSOAS DO DESPORTO NO DESPORTO

Os clubes moçambicanos estão a ser bem geridos?

Ou fazemos futebol ou não o fazemos. As pessoas vêm para o futebol encher os seus bolsos. Aparecem como dirigentes de clubes ou porque querem abrir negócio ou porque querem ganhar nome para contornarem as suas vidas. Nós precisamos de pessoas do desporto no desporto. Eu fico lixado por ver pessoas que não dão nada ao desporto a confusionarem famílias que sempre deram algo ao desporto, porque querem ganhar nome e fazer manchetes nos jornais. Isto é pára-quedismo. Isto é amadorismo. No nosso desporto há formação para se ser atleta, treinador, árbitro, médico, mas nunca há formação de dirigentes. Porque é que o nosso dirigente não se quer formar, ou estagiar lá fora, aprender como se gere um clube, uma associação ou uma federação? Aqueles que são dirigentes de clubes grandes do mundo estão sempre a procurar saber mais.

O nosso dirigente só fica à espera que alguém lhe dê dinheiro. Porque não vai aprender como se faz dinheiro para um clube? Nem sabe que formando jogadores pode ganhar muito dinheiro. Fica à espera de vender jogadores seniores que saltaram etapas. Andamos a levar para o estrangeiro jogadores sem formação e ficam meses e anos para integração. Hoje os clubes compram jogadores de utilização imediata. Se começarmos a formar seriamente vamos começar a vender jogadores para grandes clubes, o que será benéfico para o futebol nacional.

Que mais sabe fazer, para além de futebol e fazer comentários desportivos televisivos?

Eu comecei a fazer futebol muito cedo. Não sei fazer mais nada. Os nossos putos não se aventuram em coisas boas, senão em bebedeiras, lá na Mafalala. Com um pouco de aventura teríamos jogadores por

todo o mundo e isso alavancaria o nosso futebol 
Só sei fazer futebol. Eu cresci a fazer futebol. A minha mãe dizia-me vai à escola, mas eu preferia futebol. Não me riam quando eu digo que só sei fazer futebol. Nunca direi que sou mecânico quando só sei fazer futebol. Posso vender bola, posso vender botas, mas não me mandem fazer coisas que não estejam relacionadas com o futebol. Na África do Sul quando digo que faço futebol respeitam-me. Aqui quando digo o mesmo riem-se de mim. Na nossa sociedade há pessoas que nunca chutaram uma bola que se julgam mais desportistas que você que sofreu ao sol a jogar, representando clubes e o país. Aqui quem diz que o seu emprego é futebol é tido como bandido. Aqui somos desvalorizados por estranhos no nosso sector.

 

O que lhe faltou no futebol quando jogador?

Gostaria que tivesse um treinador que tivesse sido referência no futebol mundial, como Abel Xavier, para eu ser como ele. Nós terminámos onde terminaram os nossos treinadores. Onde está Nana? Ele foi um grande jogador que serviria de referência, fonte de inspiração, mas quando acabou de jogar ficou abandonado, tal como tantos outros.

Como sair disto?

Como é que vamos sair disso se os próprios dirigentes não querem que saiamos disto para eles continuarem a controlar tudo. Eles, treinadores e dirigentes, afastam os craques do clube para poderem dominar tudo e todos. Lá fora quem chega procura saber dos craques do clube para construir a mística. É assim na Europa. 

Está de costas voltadas com Nampula?

Olha, se em Maputo se trabalha assim, imagine como se trabalha em Nampula. É muito longe! Graças ao Ferroviário de Nampula que vai fazendo das tripas o coração. Nampula foi a primeira província a vender um campo de futebol. E quem vendeu é amigo meu, que eu não sei onde ele foi aprender o negócio de vender campos.

Refere-se a Abdul Hanane?

Sim. Hanane! Meu amigo. Eu não sei onde aprendeu a vender campos. sabendo que não tem outro. Como é que tu vendes a tua casa para dormires na rua? Foi Hanane que começou com o negócio de venda de campos em Moçambique e a moda pegou. O campo do Benfica de Nampula que ele vendeu estava num lugar estratégico, enchia de crianças para aprenderem futebol. É por causa deste tipo de gente que a cidade de Nampula, capital do Norte, só tem uma equipa no “Moçambola”, e um distrito, Nacala, tem duas. São estes mesmos senhores que provocam tiroteios e pedradas nos campos de futebol de Nampula.

Em Nampula todos são donos mas ninguém é dono de nada. Alguém terá de fazer algo para que o futebol não desapareça na cidade de Nampula. Nós, macuas de verdade, temos de ajudar a nossa terra. Os que vendem campos e campeonatos deviam ser banidos. A situação de Nampula é complicada. É difícil ajudar. 

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