A cidade chinesa de Shenzhen é uma surpreendente urbe que faz casar o que há de mais moderno em termos de tecnologia, arquitectura e ordenamento territorial. Entretanto, a maior parte dos seus residentes nunca tinha visto gente de raça negra ao vivo. Quando chegamos, uns ficaram boquiabertos, outros se assustaram, houve até quem se riu e outros se afastaram. Mas, também houve gente que pediu para fazer fotos. É um lado da China que a maior parte dos moçambicanos não faz ideia de que existe.
Viajar para a China é ir ao encontro de uma realidade completamente diferente em todos os aspectos, a começar pelo básico que é a comunicação. A fala e os gestos são totalmente diferentes. Por exemplo, para enumerar de um a cinco, eles fazem como nós. Um dedo, dois, três quatro e cinco dedos. Porém, de seis em diante, é preciso fazer figurinhas com os dedos e aí “a vaca torce o rabo”.
Logo a seguir, vem a gastronomia que requer uma adaptação do paladar que pode levar muitos dias. Alguns pratos, particularmente saladas, são de difícil ingestão. São escorregadios, com um sabor fora do comum e com um cheirinho pouco convidativo.
Mas, o primeiro contacto com a cultura chinesa começa no voo de ligação para um dos destinos daquele país. No nosso caso, a acoplagem foi feita a partir da cidade de Adis Abeba, na Etiópia, tendo como destino a cidade de Hong Kong.
Aqui, as instruções de segurança para os passageiros são dados em chinês, inglês e em etíope e o sotaque da tripulação começa a revelar o que vamos encontrar mais adiante. A leve refeição servida a bordo, também é um bom indicador do que nos aguarda. Carne ou peixe com molho agridoce para começar. No nosso grupo, poucos conseguem saborear, apesar do esforço empreendido.
Depois de cerca de nove horas de voo, a grande Hong Kong aparece entre as nuvens e se revela uma cidade com um movimento frenético, o porto tem um movimento intenso e o aeroporto é de tráfego estonteante. É um sobe e desce ininterrupto. Mas, isso é o que se vê lá de cima.
Depois da aterragem, segue-se o exercício de protocolar os passaportes para o acesso ao território. Os agentes de migração e os passageiros de outros voos são os primeiros a olhar com estranheza para o nosso grupo. Onze negros em Hong Kong fazem toda a diferença num aeroporto cheio de chineses.
No balcão, o agente olha para o passaporte, folheia, volta a folhear, fita-nos nos olhos, revê a fotografia e tecla no computador. A seguir franze a testa e chama pelo colega do lado enquanto aponta para o ecrã do computador que está à sua frente. Ambos parecem não encontrar uma resposta para um suposto enigma e chamam mais colegas que se juntam à volta do computador e fitam-nos.
Com aquele inglês arranhado como o nosso perguntam de onde a gente vem e o que vai fazer na China. Explicamos os motivos da nossa deslocação e eles procuram sossegar-nos dizendo que vão fazer uma consulta manual do código do nosso passaporte porque não existe no “sistema” deles.
Felizmente, um dos chefes se aproxima e mostra um pedaço de papel onde se vê um “MOZ” e umas letras em chinês. O passaporte é carimbado e o sinal de aceitação é dado. Já estamos em território chinês onde é verão e, por isso, sentimos algum suor na testa. O dia vai a meio.
PENTE FINO
Arrastamos as malas e seguimos pelos corredores do aeroporto, enquanto percebemos que somos fitamos por todos. Ainda no interior do aeroporto, tem dois pontos distintos onde dois grupos com cerca de 10 agentes da polícia cada estão perfilados. Estes olham para os passageiros, bem no fundo dos olhos, que dá um certo calafrio.
Alguns não escondem o espanto e fazem sinais discretos entre si. Nos corredores, adultos, jovens e crianças agem da mesma maneira. Arregalam os olhos, pasmam-se e outros se assustam. Alguns sorriem e saúdam. Tudo muito estranho para nós.
Das janelas do aeroporto percebemos que o movimento de táxis na área de embarque e de desembarque é fora de série. Dá também para ver que há aviões de grande porte a aterrar a cada instante. Sentimos que estamos perante um colosso económico.
Lá fora, quatro viaturas parecidas com Noah e El Grand nos aguardam e os motoristas gesticulam que em cada carro devem seguir quatro passageiros e respectivas malas. Pena é que a comunicação com os tripulantes é limitada a gestos ineficazes para ambos os lados.
Abandonamos o aeroporto e, enquanto circulamos pelo estacionamento vemos os últimos gritos da indústria automóvel parqueados. Entre Mercedes, BMW e VW, sobressaem Porches, Ferrari, Lamborghini e Bugatt. É assim naquele parque de estacionamento e assim é nas estradas.
Em cerca de uma hora, percorremos as vias que cruzam o acesso ao porto. Tem gigantescas pontes, edifícios altos e envidraçados que são intercalados por áreas verdes e repletas de flores, por vezes pequenas florestas com um verde intenso.
Chegamos então a um posto de fiscalização de polícia de Migração e das Alfândegas, na separação entre Hong Kong, que é uma região autónoma, e Shenzhen, que é uma Zona Económica Especial (ZEE) da República Popular da China (RPC).
Aquele local de fiscalização tem uma configuração que lembra a Portagem de Maputo. Ali, os agentes recolhem nossos passaportes, observam rosto por rosto, conferem a autenticidade das fotografias, carimbam e nos mandam seguir.
Poucos metros depois, mais um posto de controlo. Desta vez, estamos perante agentes da polícia do lado de Shenzhen. Aqui, o controlo é mais apertado. Puro pente fino e cara de poucos amigos. O porta-malas é aberto a metros de distância e a bagagem é verificada por um sistema electrónico não intrusivo.
Para os viajantes, a polícia reserva um exame que visa o controlo de febres que resultem dos vírus do ébola, gripe e do zika para o interior daquele imenso país. O controlo é tão apertado que até as fotos constantes nos passaportes são examinadas.
Em caso de suspeita de falta de autenticidade, o viajante é fotografado novamente para se fazer a comparação presencial. Um dos nossos colegas passou por isso, o que nos levou a um atraso de cerca de uma hora, sem contar com a verificação electrónica e manual de algumas malas que a polícia desconfiou que tivessem algo anormal. Em vão.
AVENTURA GASTRONÓMICA
Depois do pequeno, mas stressante contacto com a polícia, estamos na jovem cidade de Shenzhen, uma das mais novas da China, cuja construção iniciou há cerca de 30 anos e que ainda tem bairros inteiros a serem erguidos. Os prédios são altos, autênticos arranha-céus. As estradas são largas, com múltiplas pistas, pontes entrelaçadas e muitos túneis que esventram montanhas.
Na componente infra-estruturas, Shenzhen não perde nada com as cidades mais modernas do mundo. Nada mesmo. Esta cidade ombreia e bem com as grandes metrópoles do mundo ocidental, pois os edifícios são de ousada arquitectura, o verde está sempre presente, tem locais específicos para a circulação de viaturas, autocarros, velocípedes, ciclistas e peões.
No quesito limpeza, os cerca de 20 milhões de habitantes desta cidade (quase a totalidade dos moçambicanos) são uma verdadeira escola. Nem um papel, saco plástico ou garrafa no chão. Também não há buracos no asfalto e nos passeios.
Não há agentes da polícia armados de AKMs, ninguém pede Bilhete de Identidade ou passaporte a ninguém, anda-se à vontade de dia e de noite e apesar do intenso movimento de pessoas, a vida flui tranquilamente. Em suma, é outro nível.
Ainda nos refazíamos do cansaço da longa viagem, de cerca de 14 horas de voo entre Maputo e Hong Kong, e mais cerca de três horas de Hong Kong a Shenzhen, e os anfitriões decidem oferecer-nos um jantar típico. Com aqueles pauzinhos que eles usam como talheres, o infalível chá e os diminutos pratos (autênticos pires).
A mesa circular, com um centro giratório, vai recebendo travessas com o manjar. Pão a vapor, peixe frito coberto de um molho doce, vegetais diversos, massa chinesa, tiras de pato e de frango, e arroz chau-chau. Com chá e mais chá. Também nos oferecem refrigerantes, mas nota-se claramente que “os donos da casa” não se simpatizam muito com refrescos. Preferem o chá mesmo e sem açúcar.
A ceia decorre em clima de aprendizagem sobre a utilização dos talheres, sequência de pratos, associação dos molhos, sabor do chá, enfim. É um jantar-aula, ou se preferirmos, jantar-escola. Aliás, foi assim em toda a estada. A cada refeição uma aventura pela diversa e abundante gastronomia chinesa.
FAMOSOS NA Shenzhem
No contacto que tivemos com a realidade da cidade de Shenzhen, saltou à vista o facto de haver vários canais de televisão chineses que versam sobre a realidade local nas línguas deles, excepto o canal CCTV News que extravasa um pouco e fala do que se passa um pouco por todo o mundo, mas numa perspectiva chinesa, mas em inglês.
Também saltou à vista o facto de não se usar o Google como motor de busca, não ser possível aceder a correio electrónico (e-mails) por via do Gmail. De Facebook nem se fala. Eles têm redes sociais próprias. Assim sendo, limitamos a nossa comunicação com familiares, amigos e colegas vis whatsapp e e-mails alternativos.
Apesar dessa limitante, os residentes de Shenzhen estão permanentemente conectados. Onde quer que estejam tem os seus telemóveis à mão. Parecerá exagero dizer que pedalam a teclar, mas é facto. Até à mesa, a jantar em família teclam. Se são 10 pessoas à mesa haverá 10 telefones a serem usados. Incrível. Nos autocarros, idem. Todos de cabeça curvada a teclar.
Mas, tudo isto não espantou mais do que ver os chineses a se surpreenderem com a nossa presença naquela cidade. Por onde quer que fossemos, havia gente pasmada.
O auge desta realidade foi percebido no Centro Cultural de Shenzhen, local de grande afluência de turistas de toda a China e arredores. No lugar de observar as belezas ali expostas, os turistas concentraram a sua atenção no nosso grupo. Uns pediram para se deixar fotografar connosco, mas outros optaram por “roubar” fotos. Um espectáculo incomum.
Apesar da sensação desagradável, decidimos facilitar a vida de todos e os cliques se sucederam onde quer que fossemos naquele parque. Pelo interesse manifestado naquele recinto, por estas alturas devemos ser famosos na China. Foram muitas imagens captadas por muitos chineses.
Conforme referimos antes, naquela cidade chinesa não há negros à vista, pelo que nós éramos os únicos. O pior quadro ocorreu quando o autor deste texto foi levado a visitar o Happy Valley, uma espécie de Disneylândia de Shenzhen.
O parque estava repleto de crianças e adolescentes provenientes das escolas primárias das cercanias que, a dada altura, perguntaram ao nosso guia se o cidadão que viam eram norte-americano, australiano ou britânico, isto por causa dos negros que aparecem como estrelas desportivas e de cinema.
A dada altura, todas as crianças e acompanhantes queriam captar uma foto ao lado do “american”. Outros tocavam, apertavam a mão, saudavam, enfim, um momento esquisito, mas que nos fez perceber que estávamos perante um povo fechado em si.
CIDADE CARA
Depois de perceber um pouco da vida dos chineses, a nossa Reportagem procurou perceber como é o quotidiano naquela cidade que acolhe uma das indústrias mais poderosas do mundo, a Huawei Technologies Corporation. O que percebemos, logo à primeira, é que os funcionários desta empresa são os mais bem pagos.
Aliás, numa entrevista concedida recentemente pelo fundador desta empresa, Ren Zhengfei, de 71 anos de idade, ele afirma que a empresa quase teve um colapso há cerca de três anos justamente porque os trabalhadores eram ricos e não se sentiam dispostos a fazer aventuras.
“Chegamos a um ponto em que nos era difícil mandar os nossos colaboradores para trabalharem fora da China. Todos queriam comprar casas na capital, Beijing, e na cidade de Xangai, e permanecerem o mais próximo possível das suas famílias”, disse.
Porque são milhares de trabalhadores com bons ordenados, a vida na cidade é feita um pouco em redor das exigências destes ou ainda na perspectiva de tirar deles o maior bolo possível das algibeiras. Circular com o crachá daquela empresa é se oferecer a preços especulativos.
A título de exemplo, nos acessos aos condomínios onde estes residem, há sempre grupos de promotores de venda de empresas imobiliárias e de bancos a anunciarem produtos e serviços que, pelo que soubemos, custam os olhos da cara.
Procuramos saber quanto custa um dos apartamentos modernos de tipo dois (T2), com 6/16 metros e soubemos que o metro quadrado é vendido a preços que variam de 10 e 20 mil dólares, convertidos para a moeda local, o yuan ou Renmimbi (RMB), o que é uma fortuna para muitos.
À semelhança de Hong Kong, a cidade de Shenzhen tem muitos cidadãos titulares de viaturas topo de gama. É comum ver Ferrari, Porche, Lanborghini e Bugatti a circularem pelas diferentes artérias.
Naquela cidade, é escusado pensar em adquirir vestuário ou outros bens que possam servir de recordação porque os preços são altos e, se o comprador é claramente um estrangeiro, como era o nosso caso, nem há discussão possível.
A maior parte dos residentes da cidade com quem conversamos, recomendaram uma viagem à cidade de Guanzhou, que fica a norte de Shenzhen, alegando que é lá onde se reúnem os centros comerciais mais baratos e mais frequentados por compradores africanos e não só.
Aliás, testemunhamos a qualidade de vida elevada dos residentes de Shenzhen quando visitamos os centros comerciais, incluindo um moderníssimo conhecido por KiKi. Ali só perfilam grandes marcas de roupa, sapatos e acessórios. Os preços eram de tirar os olhos da cara. É este o lado B da China.
Texto de Jorge Rungo, em Shenzhen
jorge.rungo@snoticicas.co.mz