Celebrou-se a 2 de Abril passado o dia Mundial da consciencialização do Autismo. Sendo uma perturbação neuro-psiquiátrica pouco conhecida entre nós, domingo entrevistouWilza Fumo, médica psiquiatra, do Departamento de Saúde Mental, do Ministério da Saúde (MISAU), que explica para o amigo leitor os contornos deste tipo perturbação e anuncia a criação de consultas para autistas nas unidades de saúde do país.
O que é autismo?
É uma perturbação neuro-psiquiátrica, que se vai manifestar durante o desenvolvimento. Há características, que se dizem principais, que se vão notar na pessoa com perturbação do espectro autista.
Por exemplo?
Dificuldades na interacção social, limitação na comunicação, sobretudo na linguagem verbal, e comportamentos repetitivos ou estereotipados. Surge normalmente antes dos 36 meses de vida, portanto, antes dos três anos de idade, mas é possível diagnosticar a partir dos 18 meses de idade.
Perturbações neurológicas. Troquemos isso em palavras simples.
Tem a ver com o desenvolvimento neuronal, que vai definir várias outras características a posteriori no comportamento e no funcionamento do indivíduo. É neurológico porque são os neurónios que vão sofrer alterações na sua migração ou no seu crescimento e que mais tarde vão se traduzir em alterações nessas áreas de que falamos.
Quais são os sinais que, a priori podem, ajudar os pais a suspeitar que alguma coisa não vai bem?
Há o chamado autismo clássico, mas ultimamente fala-se mais do espectro autista. Ou seja, vamos ter quadros de diferente gravidade e manifestação da mesma perturbação que pode variar de leve a grave. Portanto, há o autismo clássico (em que há défice nas três áreas que falámos), o Sidrome de Asperger (em que caracteristicamente há menos défice na linguagem. Também existe a denominada perturbação global de desenvolvimento não especificada, que não é nem autismo nem Asperger, mas partilha algumas características do espectro autista.
Num bebé com ausência de qualquer perturbação o que observamos até aos 3 anos de idade, é que ele inicialmente é um espectador, depois começa a imitar as pessoas à sua volta, a participar e a desenvolver habilidades de comunicação e vai desenvolvendo também a empatia social.
O que vemos na pessoa que tem o espectro de perturbação autista?
Um dos primeiros sinais é que não olha para as pessoas, não olha para os cuidadores, e não segue o movimento dos objectos com facilidade. Não responde ao próprio nome. Podem dar a impressão que tem dificuldade auditiva ou visual.
A limitação na comunicação pode manifestar-se por um mutismo absoluto, a pessoa não fala; também pode ter uma vocalização inadequada, isto é, diz algumas sílabas ou repete as ditas por outra pessoa ou por ela mesma. Em alguns casos, pode até desenvolver uma linguagem total, mas a forma de comunicação não é típica. Tem uma linguagem monocórdica, geralmente sem ritmo e sem entoação, e com ausência de expressão facial. Não usa muito os gestos. Fica com uma fala um bocado robotizada.
E no relacionamento interpessoal, como é as coisas acontecem?
Não imitam facilmente. Sabemos que ao fazer tá-tá para um bebé passado um tempo ele imita o gesto, mas os que têm autismo geralmente não imitam. Não aderem aos jogos de fingir. Por exemplo fingir que eu sou pai e ele a mãe. Além disso temos aquilo a que se chama de reciprocidade emocional ou reciprocidade social, ou seja, eu entendo quando a pessoa que está comigo está triste. Nesse caso, a criança pode fazer um carinho. As crianças com perturbação do espectro autista não parecem ter esta empatia. São mais reservadas e indiferentes às alterações na expressão facial dos outros. Além disso, desenvolvem uma relação não muito adequada com os objectos. Parecem preferir mais os objectos do que a interacção com outras crianças da mesma idade, com outras pessoas e até com os cuidadores. Tem uma relação de pegar um objecto e desenvolver uma afectividade diferente com ele.
Sim!?
Alternativamente, não em todos os casos, há alterações no senso percepção. Eles têm hipersensibilidade a estímulos auditivos e a estímulos visuais. Na presença de barulho, na presença de muita luz, podem ficar agitados ou até agressivos. Aliado a isso, eles têm um limiar de dor aumentado. Ou seja, precisam de um estímulo muito doloroso para sentir dor. Por causa disso, podem se automutilar (magoar) sem se aperceberem e só pararem quando estiverem a sangrar e/ou alguém notar que algo de diferente se passa com eles.
E ao nível do comportamento repetitivo e estereotipado quando a criança está na fase motora, isto é, depois dos 18 meses?
Ela pode rodar sobre si mesma, várias vezes. Rodar um objecto sem parar ou ficar a balancear o corpo várias vezes ao longo do dia sem interagir com os outros e ter uma reacção inadequada quando é tocada. Por exemplo, ela pode esquivar-se e evitar o contacto físico ou mesmo ficar completamente indiferente.
Há formas de se ultrapassar o problema?
Gostaria de ressaltar que não se conhece a causa, mas há factores de risco claramente identificados e sobre os quais podemos actuar preventivamente. Na gravidez, por exemplo, podem surgir infecções consideradas de risco. Nesse caso, faz-se rastreio nas consultas pré-natais para a rubéola, citomegalovírus, toxoplasmose por se considerar que têm um risco que está descrito como aumentado. Hábitos da mãe durante a gravidez – como o consumo do álcool, tabaco, e outras drogam – que podem aumentar o risco. Existem medicamentos que tomados durante a gravidez podem aumentar o risco como valproato de sódio (que é usado para controlar outras doenças). Tudo isso deve ser monitorado. Factores obstétricos como o baixo peso à nascença do bebé e a asfixia peri-natal são factores de risco também descritos. Na presença destes factores recomenda-se aos pais a tomarem especial cuidado. Não significa que estão associados a 100 porcento, mas existe um risco maior quando estão presentes.
O que se pode fazer depois?
Existem alternativas terapêuticas. Não há um tratamento ainda voltado para a cura. Os tratamentos são para melhorar o funcionamento do indivíduo; melhorar a comunicação, a capacidade cognitiva e melhorar o comportamento. Tudo isso é feito ao nível das consultas de psicologia, psiquiatria ou pedo-psiquiatria (mais especificamente), terapia ocupacional e terapia da fala.
O que é Pedo-psiquiatria?
É a área da psiquiatria que trata das perturbações psiquiátricas na infância. O autismo enquadra-se no âmbito das doenças de foro mental. Geralmente, por causa desse défice a criança pode dar a sensação de não ouvir e de não seguir os objectos. Quando isso acontece, primeiro passam pela Pediatria, só depois são referidas na ausência de dificuldade visual ou auditiva detectável.
Tratamento?
É muito importante o envolvimento dos pais e dos educadores porque têm um papel fundamental não só no diagnóstico, porque trazem as crianças mais cedo, mas também no tratamento porque serão eles a fazer o estímulo diário, sobretudo os cuidadores. O tratamento consiste também em estimular a criança socialmente e cognitivamente, de forma contínua, e não desanimar. O estímulo persistente é que vai ser determinante no sucesso do tratamento.
Depois existem estratégias ao nível de psicoterapia que se fazem para modular o comportamento e a interacção social da criança. Portanto vai se estimular a linguagem, a imitação e fazer com que a criança perceba os benefícios da interacção. Ao mesmo tempo inibem-se os comportamentos que são desajustados socialmente.
E os comportamentos repetitivos?
Os comportamentos repetitivos também podem ser inibidos por terapia específica e através da medicação. O padrão repetitivo e estereotipado é controlável porque trata-se de um circuito neuronal que faz com que haja uma repetição ao nível da área que controla os movimentos, e é possível interromper esse circuito mediante tratamento. O comportamento da agitação e da agressividade também são possíveis de controlar através da medicação.
É tudo?
Não, existem outros sintomas que surgem no autismo que se associam em termos de co-morbilidade que podem ser modulados por medicação como as convulsões. A epilepsia tem grande co-morbilidade com a perturbação do espectro autista em cerca de 30 porcento. Mas, se consegue controlar as convulsões com tratamento. Também tem de se controlar a ansiedade e depressão que às vezes surge na criança, porque ela percebe que não está a ter um comportamento ajustado e frustra-se com isso. Com medicação consegue-se modular o problema.
Em concreto, o que é que a área cognitiva abarca?
Estamos a falar da linguagem, da atenção, da percepção das sensações, do pensamento, da memória e das tomadas de decisão. Estamos a falar das áreas ao nível do sistema nervoso que vão controlar a aprendizagem e o funcionamento do indivíduo.
O que é que dizem os números em relação ao autismo?
Ao nível global fala-se de cinco a dez crianças por cada dez mil pessoas. Com este valor não podemos dizer que é uma doença rara. E as tendências são de aumentar o diagnóstico ao longo do tempo, porque está também a aumentar o conhecimento. Aliás, os pais trazem as crianças mais cedo. Os profissionais estão mais treinados e em algumas áreas já se fala em mais de 60 crianças por cada 20 mil pessoas, sobretudo nos países desenvolvidos. No nosso meio ainda não temos números que nos permitam avançar uma estatística fiável.
Actualmente onde é que funcionam as consultas?
Têm funcionado ao nível do Hospital Central de Maputo (HCM), do Hospital Psiquiátrico do Infulene e do Hospital Provincial da Matola, em Maputo. Ao nível do País, funcionam nas unidades com psiquiatra ou técnico de psiquiatria e psicólogo sobretudo ao nível dos CERPIJ ou Centros de Reabilitação Psicológica Infantil e Juvenil. Mas não são consultas especializadas. Estamos neste momento a preparar-nos para o atendimento especializado às pessoas com perturbação do espectro autista que irão funcionar no Centro de Psicologia Aplicada e Exames Psicotécnicos e no Hospital Provincial da Matola, a partir de Junho do presente ano.
SINDROMA
DE ASPERGER
Pode dissertar sobre o Sindroma de Asperger.
Primeiro definiu-se o autismo, inicialmente descrito como perturbação autista de contacto afectivo. O autismo clássico, que está mais associado ao atraso mental ou deficiência intelectual em cerca de 75%. Depois, surgiu a síndrome de Asperger (que recebeu o nome do pediatra que o descreveu), em que não há limitação pronunciada da linguagem como acontece no autismo clássico. Essas pessoas conseguem comunicar e até desenvolver habilidades profissionais muito acima da média. A literatura descreve casos de pessoas que chegaram à prodígios nas suas áreas de interesse (na física, artes gráficas, música, etc.), pois a maioria com Síndrome de Asperger tem um coeficiente de inteligência acima da média. Contudo, geralmente têm dificuldades na socialização e comportamentos/interesses restritos e daí necessitarem igualmente de acompanhamento. Não nos podemos esquecer que as pessoas não são seres exclusivamente intelectuais, mas também (e talvez sobretudo) sociais.
Texto de André Matola
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