No âmbito da celebração dos 41 anos da Polícia da República de Moçambique, domingo traz para o caro leitor uma entrevista com Carlota Elija, Agente Superintendente da Polícia da República de Moçambique, que esta há 25 ao serviço da corporação.
O seu ingresso foi praticamente à revelia da família. Hoje, com uma larga experiência de polícia, Carlota Elija considera que a preparação militar não é algo negativo como é interpretado: transforma positivamente a mente das pessoas. Leva à disciplina e autoconfiança. Acompanhe a conversa.
No passado, ser polícia era exclusivo a indivíduos de sexo masculino. O que a levou a optar por esta profissão?
Quando passei a viver em Maputo, em 1988, na residência da minha tia, no Bairro do Aeroporto, ouvi de uma vizinha que trabalhava no Ministério do Interior, que estavam a recrutar mulheres para integrarem as fileiras da polícia. Preparei os meus documentos e candidatei-me porque já nutria alguma simpatia pela área pois o meu avô foi, em tempos, foi sipaio.
Como a sua família acolheu essa decisão?
A princípio estranhou. A minha mãe chegou a perguntar se não havia outra alternativa a ingressar na polícia. Mas eu não via nenhuma anormalidade na minha escolha, pois, como referi, convivi com o meu avô, gostava de o ver fardado. E, nos meados de 1989, saíram os resultados da candidatura, juntamente com o aviso que devia ficar preparada porque a qualquer momento poderia partir.
Restou-lhe, então, ficar de mala pronta…
Não tinha como deixar a mala já pronta, tinha que ser tudo às escondidas porque suspeitava que a minha tia, não me deixaria ir, agravado pelo facto de o meu pai também ter estado contra essa ideia. Aliás, lembro-me que na altura em que quis me inscrever para o Serviço Militar Obrigatório, o meu pai, que trabalhava na Administração, conseguiu inviabilizar a minha inscrição.
E como se safou dessa?
Quando chegou o dia de partida, nessa manhã, eu disse a minha tia que ia entrar para a polícia. Surpresa, perguntou-me porque é que não lhe havia dito antes. Apesar de reticente e aflita por não saber para onde nos levariam, ela compreendeu.
Nessa altura havia muitas mulheres que se interessavam pela polícia?
Penso que sim, pois estavam lá muitas mulheres que se tinham alistado. Éramos cerca de 100 recrutas só da cidade de Maputo. Entramos nos autocarros e rumamos ao Centro de Formação de Michafutene. Era o Centro de Formação Feminina.
Como foi o primeiro dia no Centro. Adaptou-se ao ambiente com facilidade?
Fomos recebidas pelo responsável pela formação. Ele mandou-nos pegar nas nossas sacolas e correr até ao interior. Era uma espécie de recepção dos novatos. Apresentaram-nos todos os departamentos em corrida e no final fomos à formatura onde se dividiu o pessoal em pelotões (grupos). A primeira semana foi muito difícil porque tinha que conviver com várias pessoas desconhecidas e provenientes de diferentes províncias. Mas depois foi mais fácil porque existiam mulheres de Inhambane e só de saber que vinham da minha terra deu-me algum conforto e tornei-me amiga de duas delas.
Lá, o despertar com o cantar dos pássaros é substituído pelo apito….
Sim. O apito tocava pelas 4horas da manhã. Era uma estória, pois nem todas conseguiam, tínhamos que acorda-las. Mas eu ambientei-me com facilidade porque já estava habituada a acordar cedo. Todas as tarefas eram feitas por nós. Fazíamos de tudo, desde lavar as casas de banho até limpeza do Centro com enxadas e ancinhos.
O que era difícil na Formação?
A disciplina. Uma falha valia um castigo. Os castigos eram aplicados aos que tinham dificuldade para obedecer. Por exemplo a quem faltava às aulas para dormir, a quem não gostava de ser mandado. Lembro-me que uma vez tive que rastejar numa rede com ferros por ter falhado o cumprimento de uma orientação.
Qual foi a experiência que lhe marcou nesta formação?
Foi quando fomos fazer manobra. Não sei como explicar, mas geralmente acorda-se de manhã, bebe-se apenas água e leva-se também algum mantimento e faz-se uma caminhada a pé pela mata para se treinar a resistência. Recordo-me que saímos do Centro de Michafutene até Matalane e nos guiávamos através de bússolas. Foi um exercício importante suficiente para eu afirmar que a vida militar transforma a mente das pessoas, em particular da mulher.
De que forma?
Tornando-a mais ágil, flexível, calculista e disciplinada. Uma mulher que não fez o Serviço Militar Obrigatório tem tendência a ser muito frágil e emocionam-se com facilidade. Não quero com isso dizer que todas as mulheres que não cumpriram com o Serviço Militar Obrigatório são frágeis, mas uma mulher que cumpriu serviço militar é diferente, só no seu andar consegue-se perceber. Ela é firme.
TRABALHO
COM PRISIONEIRAS
Quando terminou o SMO onde foi afectada?
O meu primeiro emprego foi na cadeia civil, como oficial de permanência na sessão feminina.
Conte-nos um pouco dessa experiência?
Tive momentos bons e maus. Mau porque não é fácil trabalhar com presos. Ali cada um tem o seu comportamento. Havia mulheres que tinham cometido homicídio, roubos e até burlas. Como é habitual, elas aprendiam a fazer muitas coisas para orientá-las a criarem o auto-emprego quando saíssem dali, mas ainda assim nem todas queriam fazer. E havia mulheres diziam que uma vez presas, não queriam sair mais dali.
Alguma vez a colocaram numa situação em que tenha perdido controlo sobre elas?
Tive uma situação em que uma prisioneira fugiu. Era uma mulher adulta mas muito indisciplinada. Estava presa por burla. Criava brigas entre elas e uma vez tivemos que a levar à cela disciplinar, onde os presos ficam isolados. No dia seguinte a senhora havia desaparecido de lá sem arrombar a porta e nem a janela. Afinal ela conseguiu alcançar a telha, afastou-as e escapuliu-se por ali.
E qual foi o desfecho do caso?
Foi recapturada depois.
E qual era o crime predominante cometido por mulheres naquela altura?
A maioria das mulheres que estavam ali tinha cometido homicídio. E por uma razão muito simples. As mulheres naquela altura eram fechadas e sofriam muita violência psicológica, daí que quando ficavam saturadas tornavam-se violentas. Era normal ouvires uma presa a dizer com toda a frieza que matou o marido e, se fosse necessário matar de novo voltaria a fazê-lo. Uma delas havia asfixiado o marido com almofada. Ele estava sob efeito de álcool.
Que lição tirou desse trabalho?
Sai dali mais madura. Apesar de serem presas, aprendi muito porque também conversava com elas e colhi coisas positivas, pois apesar de serem criminosas tinham seu lado bom. Algumas redimiam-se dos seus crimes.
Dali passou para o departamento de Trânsito. O ambiente era mais calmo…
Sim. Um colega alertou-me que havia vagas para área de polícia de trânsito. Concorri e cá estou desde 1992, como polícia de trânsito, como sinaleira.
Em algum momento sentiu que foi subestimada no trabalho pelo facto de ser mulher?
Sim. Uma vez fomos alertados da ocorrência de um acidente de viação, quando regulávamos o trafego na Avenida 24 de Julho. Corremos para local. No acidente, a viatura passou mesmo por cima do indivíduo que acabou tendo uma morte instantânea. Ele estava desfeito. Mandamos parar uma ambulância privada que ali passava para levar o corpo.Tempo depois chegou o meu chefe e de longe perguntou ao meu colega: como ele ia retirar o corpo sozinho como se eu não estivesse ali. Lá carregamos o cadáver para ambulância. Percebi que o meu chefe não olhou para mim como profissional, mas como mulher apenas.
Texto de Luísa Jorge
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