Certo dia, um menino pastorinho decidiu desobedecer a sua mãe, desviando uma quantia monetária que havia lhe sido confiada para proceder ao pagamento de algumas contas correntes da casa. “Ni rhivalele, ninga ha phindi”, (perdoe-me, nunca mais farei isto) foi o que o pequeno conseguiu soltar mediante a falha. Na verdade, eram as suas últimas palavras.
O pequeno pastor de cabritos encontrava-se no estrado da morte, condenado e executado pela sua própria mãe, Cidália Rafael Machava.
Rosto angelical, corpo franzino, olhar perdido e constantemente marejado, esta é Cidália Machava, de 38 anos, que aceitou abrir o seu coração ao domingo. O combinado era que falasse sobre si, contasse sua história de vida, seus acertos e desacertos.
“Sou mãe, trouxe ao mundo três filhos: duas meninas, uma de 16 anos e outra de 14, e um menino”. O último, por decisão da própria criadora, veio a perder a vida no passado mês de Maio. Trata-se de Lopes Januário Sitoe, que na altura da sua morte tinha 11 anos de idade. Mas… vamos por partes.
A infância de Cidália foi marcada pela separação dos seus progenitores, “quando tinha dez anos”. Nessa altura passou a viver com o pai e a madrasta que, frequentemente, a maltratava, de acordo com suas declarações. Escolarizou-se somente até à 3ª classe e aos dezasseis anos preferiu formar a sua própria família. “Vivi com o meu pai e madrasta até aos dezasseis anos. Os meus dezassete foram completados no meu próprio lar, e nessa altura estava grávida da minha primeira filha”.
As escolhas de Cidália não deram certo. A sua precipitação trouxe dissabores: “meu marido batia muito em mim, com recurso a um pau”. Esta esposa sofria calada, sequer ia a uma unidade sanitária à busca de cuidados médicos, quando golpes violentos eram desferidos em si, “ele chegava a provocar ferimentos graves no meu corpo”, receava que o seu parceiro fosse preso, sendo que “não era esse o destino que eu queria para ele”, confessa.
A relação não foi além de quatro anos de convivência (2000-2004), o que abriu caminho para que seguidamente se juntasse a outro companheiro, o pai da segunda filha e do menino falecido. Mas o destino tirou-lhe o segundo marido: “faleceu em 2008, o que me obrigou a assumir o papel de pai e mãe e garantir o sustento da minha família”.
Cidália passou por vários empregos, como empregada doméstica; numa empreiteira e, por fim, como funcionária de um bananal de Chivonguene, em Guijá, Gaza.
As suas tentativas de colocar comida na mesa davam certo, mas a relação com os seus filhos deixava muito a desejar. “Eles não levavam boa vida, tiravam coisas de mim e também dos vizinhos, revela.
Certa vez, conta Cidália, uma das meninas aprontou: “foi roubar comida já confeccionada em casa do vizinho. Desta vez contive-me, senão ia fazer estragos nela…”, confessa. Aliás, esta mulher afirma que se vê obrigada a apelar constantemente pelo auto-controlo.
Na educação dos seus filhos, usa(va) do pau, à semelhança do seu primeiro marido, para desferrar uma porradanos seus filhos “até ficar ressentida”.
Esta atitude teve, aos 14 de Maio de 2016, um final (im) previsível. domingo convida o estimado leitor a acompanhar o relato desta mãe sobre o momento em que tirou a vida do seu menino:
“Naquele dia, estava em casa somente com o meu filho. Eu havia o mandado, entre outras coisas, comprar energia, no entanto, ele não cumpriu a minha ordem. Pior, pegou no dinheiro e comprou bolachas, de acordo com relatos de pessoas. Este facto deixou-me arreliada: peguei numa capulana escorregadia, e ali no meio da nossa sala, amarrei-a ao seu pescoço juntamente com um dos seus braços. Essa foi a forma que encontrei de o imobilizar. Em seguida, bati nele desesperadamente com um pau…. O miúdo começou a perder forças e a sangrar pelas narinas e pela boca… dizia ni rhivaleli, ninga ha phinda “perdoe-me, não mais farei isto”, mas eu respondia que não tinha mais confiança nele. Depois veio a morte. Uma vez apagado, fiquei sem ideia, mas depois veio-me uma luz: carreguei-o para fora de casa, peguei numa lâmina e cortei-lhe os órgãos sexuais, em seguida coloquei o cadáver do meu filho nas minhas costas, como a um bebé, e fui deixar o corpo numa machamba”.
O que a moveu a retirar os órgãos sexuais e que destino deu aos mesmos? Questionámo-la. “Queria que, ao acharem o corpo, pensassem que teriam sido traficantes de órgãos humanos a cometer o crime. Peguei nos órgãos do meu filho e enterrei-os algures”.
Cidália pensou em tudo, inclusive em armar um flagrante ao levar uma amiga até um ponto próximo à machamba onde tinha deixado o corpo do seu filho. Lá foi finalmente descoberto. “Ao avistar algo estranho a minha amiga foi verificar e viu que se tratava do meu filho”.
Januário Sitoe, o pastor de cabritos, estava naquele local sem vida. Cidália matou o seu único rapaz, porém afirma que “o amava, chamava-o de papá”. Ao que tudo indica, não era para menos. Após a sua passagem pela terra, o anjinho Januário apareceu nos sonhos da sua assassina “para me defender de bandidos. Isso leva-me a entender que ele entrou no reino dos céus”, afirma.
Aqui na terra, esta cidadã paga pelo seu crime. Encontra-se encarcerada em uma das celas da província de Gaza, aguardando pelo julgamento. Facto interessante, é que concorda plenamente com a prisão e prefere que assim seja eternamente, pois “aqui tenho companhia. Lá fora a vida acabou. As crianças terão medo de mim, nenhuma atravessará o meu quintal, pois sou uma assassina”, entrega-se.
Tirar a vida de outrem tornou-se uma das coisas mais naturais deste mundo. Pais matam filhos e filhos matam os pais.O fenómeno vem robustecendo-se a cada dia que passa. A nossa reportagem esteve em outro local da província de Gaza, onde um crime macabro, também chocou os membros duma comunidade: duas criaturas tiraram a vida do seu próprio criador. Foi na localidade de Mapapa, distrito de Chókwè.
Houve coragem ao extremo. É que a morte teve, igualmente, requintes de crueldade. Os dois irmãosresolveram regar o corpo do pai de petróleo e atear fogo em seguida. Essa foi a paga pelo “crime de feitiçaria”, ou seja, Sérgio Honwana, de 29 anos, e Arlindo Honwana, de 27, condenaram e executaram António Honwana, seu pai, porque tinham certeza de que era feiticeiro.
O mundo clama por novos valores, comportamentos, por novas aragens. O que estará a falhar? domingo questionou a alguns membros da sociedade moçambicana, as respostas não tardaram a chegar.
Muita gente não é humana
– Jeremias Langa, líder religioso
“Os valores morais estão degradados, na sequência disso já não há amor ao próximo. Há muita falsidade, até no seio da igreja, daí que o papel das lideranças religiosas se torna fundamental, de forma a se construir um mundo melhor”. Assim se pronunciou Jeremias Langa, líder religioso quando abordado pela nossa reportagem em torno da questão da criminalidade.
Factores económicos são amiúde apontados como estando na origem dos desacertos da sociedade, entretanto, há que ter em conta que “dentro das famílias falta educação”, as pessoas tornaram-se marcadamente materialistas: “veja-se que actualmente, mesmo no seio das igrejas, as pessoas escolhem padrinhos em função das suas posses, da ostentação. Não pensam na retaguarda em termos morais, nos ganhos espirituais, no seu futuro; o presente é que conta, a ostentação é que vale, sendo que muitas vezes esses valores materiais são adquiridos de forma desonesta”.
Que medidas se mostram adequadas para mudar o cenário? Langa alerta para a importância de “não só fazer intervenções no seio das famílias, até porque as famílias não formam ilhas. A criança é educada na sua casa, mas passa grande parte do tempo fora dela. O trabalho deve ser feito também ao nível do Governo, há que criar condições para o amparo psicológico e económico. Por outro lado, questiono-me por onde andam os académicos que têm a obrigação de se ater nestes casos hediondos, para apurar a causas e avançar soluções para os mesmos? Nem sequer olham para situações em que são assassinados os pobres, somente abrem a boca quando se trata de individualidades mediáticas. Enquanto isso a sociedade moçambicana degrada-se cada vez mais”, alerta Jeremias Langa.
Agressividade
oferecida na infância
–Rômulo Muthemba, psicólogo clínico
“Se na infância nos são oferecidas fórmulas agressivas de resolução de problemas, nós adoptamo-las. Pode-se tratar de um modus da família”, palavras de Rômulo Muthemba, psicólogo clínico, quando abordado pelo nosso jornal à volta do caso da mãe que desferiu pauladas no seu filho até à morte.
Muthemba explica que todo o ser humano possui o seu lado afectivo; uma predisposição para viver com os outros na relação afectivo-emocional. Na realidade, na formação do sujeito“intervêm factores biológicos, psicológicos, sociais e culturais”,entretanto, existe, também, o lado agressivo que, quando bem usado, leva “à conquista de espaço; ao dispêndio de energia positiva, à criação, etc.”. Mas, a agressividade tem, igualmente, o seu lado negativo.
De acordo com Rômulo Muthemba, quando o indivíduo é submetido a cargas insuportáveis de sofrimento, em momentos de tensão emocional, fruto da falência do controlo sobre si “age com medidas desproporcionais, podendo acarretar consequências nefastas. Este comportamento pode estar ligado a existência de traumas na sua vida, entre outros factores.
Texto de Carol Banze
carolbanze@snoticias.co.mz
Fotos de Jerónimo Muianga