Quis o destino que três lendas deixassem o mundo dos vivos num curto intervalo de tempo, menos de dois meses. Primeiro partiu Prince aos 57 anos, em Minnesota, EUA. As razões da morte do ícone do pop ainda não estão claras.
E depois Papa Wemba, no alto de virtuosos 66 anos, um dos mais extravagantes e populares músicos de África, caiu em palco em Abidjan. E quando ainda o mundo se refazia do drama eis que Moçambique perde o seu nome maior da cultura musical: João Cabaço, profundo destilador de desinências líricas, o poeta do suspiro, que cantava para encantar e decantar sentimentos e afectos.
Prince: ícone da “pop music”, visionário e incompreendido
A morte de Prince causou natural comoção, pois ele traduzia uma forma de estar única na música, muitas vezes incompreendido. Ao longo da sua carreira de 40 anos, chegou mesmo a experimentar a pele de actor, o que lhe valeu sete merecidos prémios, trinta indicações para o “Grammy”, um “Óscar”, um “Globo de Ouro” e a magnífica marca de catorze músicas no top 10 da “Bilboard”. Para falar de Prince é inevitável que se faça uma espécie de “flashpoint” e recuar para os anos 80, onde nos vamos recordar do emblemático e estrondoso “Purple Rain”, um hit que povoou o imaginário de muitos jovens e considerado ainda hoje uma das melhores músicas de todos os tempos. E como não fazer referência ao épico “Nothing Compares 2 U”, que, como a Fénix, fez renascer Prince das cinzas do amor e encarregou-se também de reviver a mitologia do cupido em muitos corações apaixonados.
Prince tornou-se num fenómeno mundial de tal modo que começaram a aparecer discussões sobre quem seria o mais talentoso: Prince ou Michael Jackson. Foi sem dúvidas um momento ímpar para a música “soul” negra, quando, a par de outros bons cantores negros, estes dois homens lançaram-se ao palco para vitalizar as suas melhores performances. Em Fevereiro de 2007 Prince “incendeia” o majestoso Super Bowl XLI com um espectáculo considerado dos melhores de todos os tempos, quando, debaixo de chuva a cântaros e com o mítico estádio lotado, surge com um aspecto franzino e frágil contrastando com o poderio da voz e da destreza, com um fato verde meio antiquado, mas conveniente, e uma guitarra castanha reclamando acordes marcianos. Definitivamente um espectáculo memorável, principalmente quando o mítico Super Bowl “desabou” com o toque mágico de “Purple Rain”. Impressionante.
Este ícone da “black pop music” marcou a imagem de uma época também com sucessos como “When Doves Cry”, “Let’s Go Crazy” e “Kiss“.
Franzino, com apenas 1,57 de altura, com um visual único e diferente, Prince não se destacou apenas na música, também avultou-se pelas opiniões fortes quanto à indústria do entretenimento, como quando escreveu a palavra “escravo” na sua bochecha para protestar contra as condições contratuais de uma conhecida discográfica. Filho de músicos Prince Rodgers Nelson nasceu e morreu em Minnesota.
Papa Wemba: O “sapeur” que conversava com Deus
Colapsou em palco durante um concerto e não resistiu. Tinha 66 anos. Morreu a fazer o que mais prazer lhe dava. A 23 de Abril, na Costa do Marfim, em pleno Festival Femua, Papa Wemba destilava “remakes” fundidos pelos ritmos tradicionais africanos e o “pop rock” ocidental quando o coração resolveu pregar-lhe uma dramática partida. Caiu de bruços e nunca mais se levantou. E terminou o reinado de um rei que insistia e persistia na excelência da rumba africana. Wemba, um monstro da percussão africana, caiu servindo a música que tanto amava. Ao longo da sua trajectória foi criando e recriando maiores encantos à rumba, apresentando-a ao mundo com uma destreza única. Em 1999 actuou ao lado de ilustres fazedores de música como Peter Gabriel e Stevie Wonder, o que lhe rendeu rasgados elogios da difícil crítica musical portuguesa, habituada a líricas mais tradicionais.
Papa Wemba, também conhecido como o "Rei do Rhumba Rock", era de uma de uma extravagância peculiar, mas também bastante cosmopolita. Extraordinariamente eclético, de tal modo que também experimentou o cinema e a moda. Ele foi o actor principal de "La vie est belle" do realizador belga Benoît Lamy e, na moda, Papa Wemba é um dos pais dos “Sapeurs” – homens da arte do bem vestir. Para Wemba, o culto dos “Sapeurs” promovia, entre os jovens, elevados standards de higiene pessoal, saber vestir, barba feita, bem perfumado e bem penteado. Era um “gentleman” que aliava um cosmopolitismo extremo a um intrigante amor pelas raízes africanas, chegando mesmo a ganhar o “status” de chefe guerreiro, atribuição dada pelos anciãos do seu clã pela sua contribuição à música e cultura.
Por outro lado, era por demais conhecida a sua devoção pela fé cristã, de tal modo que acreditava que tinha conversas com Deus. Aliás, em entrevista a uma rede de televisão católica francesa, Papa Wemba revelou que tinha recebido a fé cristã através dos pais, protestantes, e frequentado uma escola católica. «A minha mãe incitava-me a ir à missa todas as manhãs», afirmou. A sua voz foi forjada nos coros da igreja. Na canção “Numero d’écrou”, incluída no seu álbum “Somo trop”, Wemba conta que a sua condenação, em 2004, por um tribunal francês, a 30 meses de prisão, o tinha aproximado de Deus. O cantor foi acusado de colaborar na permanência irregular de clandestinos em França, obtendo dinheiro em troca de autorizações de permanência.
«Da minha cela ouvi Jesus e reconheci que Ele era o meu rei», afirmou em 2003, noutra entrevista. Noutra ocasião, Wemba declarou que «o homem africano compreende melhor a fé do que o homem ocidental porque sofreu muito mais. Ele sofreu a injustiça, a independência, o esclavagismo».
A proximidade do artista ao Vaticano foi reforçada em Novembro do mesmo ano, em Cotonou, quando da viagem de Bento XVI ao Benim: o concerto que apresentou, à chegada do Papa, retomava os principais temas do documento: a reconciliação, a justiça e a paz. Alguém dizia: “mais do que chorar a morte de um herói, devemos celebrar a sua a sua vida.»
João Cabaço: o lobo da voz gutural
Poderoso. Versátil. Às vezes ritmicamente ousado. Alto, magro, detentor de uma voz sem igual, com um perfil inconfundível em palco, João Cabaço era igual a ele mesmo. A 11 de Maio de 2014 este mesmo semanário conversou com esta singular figura da música moçambicana. Cabaço fez capa e o título não poderia ser outro: “A Voz”. Pois então “A Voz” calou-se, ainda que se continuem ouvindo acordes que teimam em ecoar por entre frestas de uma sociedade sobrevivente das difíceis agruras da vida. Uma de suas maiores virtudes era a sua voz, devido ao seu alcance vocal, gutural dir-se-ia, que atinge notasmusicais de difícil alcance para um cantor popular. Sem dúvidas uma voz com que para além de virtuosa e de um senso rítmico invulgar, revelava-se de uma força interpretativa e de um timbre fora do comum.
Cabaço nasceu no mítico bairro da Mafalala e, segundo dizia, já o gene da música estava instalado nele ainda no ventre materno. Aliás, o reportório de Cabaço é literalmente tolhido pela figura da mãe e sobre isso ele tinha uma opinião interessante: “Canto a mãe. Nós às vezes nos distraímos quando se trata da mãe. A mãe tem um poder incrível. Veja que ela carrega-nos nove meses na barriga. Isso tem um significado incrível. É uma criatura a respeitar por todo sempre. Por isso, canto-a com muita alegria.”
O talento já lá morava e o tempo encarregou-se de revelar ao mundo a voz que o tornaria especial. Aliás, a família foi toda enfeitiçada pelo vírus da música, bastando lembrar os expoentes Gonzana e André Cabaço. Nunca desdenhou a nova vaga de cantores moçambicanos, chegou mesmo a considerar que o futuro da música estava assegurado, com a condição de se trabalhar de forma mais profunda na língua, linguagem e, sobretudo, nos conteúdos e estrutura rítmica. Quem assim fala não pode ser gago e a história se encarregará de julgar o seu posicionamento sobre as novas vagas de músicos em Moçambique. Como que a legitimar esse posicionamento em relação à nova geração de músicos, Cabaço fez-se rodear, num inesquecível concerto, por 12 jovens raparigas ainda imberbes no mundo da música. Fez-se acompanhar por instrumentistas da Banda Nonje e K-10 e convidou o público para uma viagem de “Xitimela” no Centro Cultural Universitário e depois fez a festa. E que grande festa da música.
Na conferência de imprensa havida para anunciar o “show”, Cabaço explicou que o propósito de juntar 12 mulheres e todas elas jovens, em palco, era uma forma de passagem de testemunho às novas gerações.
“Isto prova que não existe conflitos de geração e nós, os mais velhos, temos a obrigação de deixar um legado aos jovens que têm vontade de fazer música. A música é isto, harmonia melódica, a dócil voz e é isso o que vamos trazer neste concerto”. Não podia ser mais esclarecedor.
Hoje Lenna Baule, Agata, Sizakiel, Tanselle, Açussena, Isabel Novela, Juthy, Yolanda, Sheila Jesuita, Filó e as irmãs Belita e Domingas continuam a destilar qualidade harmónica.
Mais do que todas as qualidades técnicas e talento que podem ter caracterizado Cabaço, o carisma, simpatia e sensibilidade irradiavam a sua personalidade, de tal modo que era frequente, em plena actuação, vê-lo emocionar-se e transmitir ao público o sentimento profundo vindo dos seus acordes. Cabaço, o “estiloso”, era um intérprete que sabia transmitir a quem o ouvisse a emoção contida nos versos.
Cabaço sabia unir a técnica e a interpretação, o que se resumia em constante treinamento. Os estrondosos e prosódicos temas “Xitimela” e “Mamana” são o resultado disso: competência, voz e emoção. Calou-se “A Voz”
SUA SENSIBILIDADE EXPRESSAVA-SE NAS COMPOSIÇÕES
– Hortêncio Langa e Arão Litsure, músicos
Para Hortêncio Langa e Arão Litsure a morte de João Cabaço, músico com trabalharam desde a década 70, é uma perda irreparável para a música nacional. Ao longo destes anos, Cabaço serviu a cultura moçambicana, em especial a música. Como um trio, levamos as nossas vozes e música nacional para outros quadrantes do mundo, avançaram.
Também era um homem de trapo fino e amigo dos seus amigos. Sabia ouvir aos outros e dava conselhos. Também era muito sensível e isso expressava-se nas suas composições. Deixa-nos uma imensa dor e saúde, remataram.
PERDEMOS UM GRANDE MÚSICO
– Arnaldo Bimbe, do Ministério da Cultura e Turismo
Arnaldo Bimbe, funcionário do Ministério da Cultura, avançou que João Cabaçofoi um grande homem e contribuiu imenso para música e cultura moçambicana. Sua morte trouxe um grande vazio para família, amigos e cultura moçambicana. A música moçambicana, por exemplo, perdeu mais um dos seus grandes representantes culturais.
Mais adiante acresceu que,espero que os músicos mais novos espelhem-se no trabalho de Cabaço pois ele foi um icon na música moçambicana.
ÉRAMOS AMIGOS DESDE A DÉCADA 60
– Leonardo Manhique, amigo de infância
João Cabaço era uma pessoa profundamente humana, humilde e comunicativa. Conhecemo-nos ainda adolescente na década 60. Ficamos amigos e assim passamos a conviver. Pouco período depois, fomos a tropa e lá tornamo-nos pára-quedistas,assim começou Leonardo Manhique, amigo de infância de João Cabaço.
Pessoalmente perdi um grande amigo, mas o país perdeu um grande músico e um grande homem. Sabia ser confidente e ajudava aos seus. Como músico era aquele que todos conhecemos, por isso penso que há necessidade do músicos mais novos buscarem inspiração nos seus trabalhos.
João Cabaço tornou-se património colectivo
O Ministério da Cultura e Turismo, através do Secretário Permanente, Domingos Artur, endereçou uma mensagem especial pela morte do músico João Cabaço, destacando que ele alcançou a grandeza, a estima de todos os concidadãos, elevando-o para além do seu tempo e do seu espaço, tornando-se um marco na história da nossa cultura, do nosso país e da humanidade.
“João Cabaço, como raros homens do nosso tempo, se tornou num património colectivo e orgulho dos moçambicanos, pela sua maneira de estar e fazer as artes, pela sua astúcia e indisfarçável militância visando fazer das experiências culturais de cada um de nós, um capital ao serviço de todos. Ele é dono de longo percurso artístico, que remonta do período colonial, quando sonhou e cantou pela liberdade dos moçambicanos, condenando e profetizando o fim do colonialismo português, como o fez no Agrupamento Musical Arabadadi Zamuthaka nos anos 1974 e 1975”.
Domingos Artur afirma que na luta titânica e irreverente visando colocar a cultura no topo das referências para o desenvolvimento social, económico e da liberdade, João Cabaço deixa-nos uma grande lição e exemplos.“Com ele, aprendemos: Que é possível trilhar com sucesso, como autodidactas, descobrindo o potencial que existe em cada um de nós, e colocá-lo ao serviço da sociedade. Foi o caso de Cabaço que ainda adolescente, encontrou-se e soube valorizar a voz extraordinária e pouco comum que as suas cordas vocais escondiam, e tornou-se o músico, compositor e intérprete que jamais tivemos em Moçambique”.
O representante do ministério afirma ainda que com o João Cabaço: “Aprendemos que podemos ser de qualquer parte deste Moçambique e sermos de Moçambique inteiro. É por isso que apesar de estar aficionado à Marrabenta, género musical que o envolveu desde a nascença, no Bairro da Mafalala, editou o álbum “Kewa Zambézia”, que resgata o cancioneiro popular da Província da Zambézia, entre outros exemplo. Em vida, admirámo-lo, e ninguém imitou com sucesso a sua elegância de estar no palco e sobretudo, o poder comunicativo como intérprete e na vida social”.
O Secretário Permanente enalteceu as qualidades de Cabaço a nível da forma peculiar que reinventou de estar no palco, a escolha criteriosa dos seus temas, essencialmente de crítica social e fundamentalmente educativos, mobilizadores para o trabalho produtivo, a solidariedade e respeito pela vida humana. “João Cabeço fez de forma exemplar, a ponte entre as tradições populares musicais e o moderno, e ensinou-nos a fazer a ponte entre as várias gerações”.
ELE ERA MUITO EXIGENTE NAS GRAVAÇÕES
– Banda Kakana
Estávamos a gravar com João Cabaço e não faltava muito, pois, maior parte das vozes haviam sido captadas. Faltava a masterização. Claro que há vozes que ele queria substituir porque não gostou da maneira como estavam. Ele era muito exigente. Por vezes ficávamos seis horas a gravar um trecho para depois ele dizer, apaguem, não gostei da minha voz. O disco está programado para ter onze faixas musicais.
TEMOS QUE RECONHECER OS ÍDOLOS AINDA VIVOS
– Filipe Cabral, amigo
Perdemos uma grande voz e dificilmente vamos ter uma outra para substituir João Cabaço. Amigo de todos e saudoso. Temos que reconhecer e homenagear os nossos ídolos ainda em vida e não quando se vão embora. Digo isso porque os artistas e desportistas são as pessoas que quando morrem sempre chega a agonia de qualquer coisa. Temos que cuidar dos nossos.
PERDEMOS A MELHOR VOZ DO PAÍS
– José Mucavel, músico
Mais nada a dizer, senão: perdemos a melhor voz do país. Ele tinha uma voz doce e bem colocada. João foi-se. Agora é preciso saber se existe uma forma de tirar o espólio musical dele para publicar.
DEIXA UM ESPÓLIO PARA NOVAS GERAÇÕES
– Arsénio Sérgio, produtor
É uma perda irreparável. Pena que estas coisas acontecem sem termos aviso. Tive a oportunidade de preparar o melhor espólio dele que deixa para gerações vindouras. A sua obra poderá ser estudada nas universidades. João Cabaço cantou Moçambique na Alemanha e em outros países.
SUAS MÚSICAS DEVEM IR AO CANCIONEIRO NACIONAL
– Fernando Luís, músico
É um momento difícil para todos nós. Ele deixou muita música e temos que reuni-la para editar um disco. Sei que a banda Kakana já havia começado. Podemos acrescentar naquilo que já fizeram e tirarmos um disco em sua homenagem tal como foi feito pelo Fanny Mpfumo. Temos que pôr João Cabaço no cancioneiro nacional porque João cantava a sociedade e quem o ouve pela primeira vez à segunda, recorda-se com facilidade. Ele bebeu do gospel e as suas músicas tocam as pessoas.
Texto de Leonel Magaia e Maria de Lurdes Cossa