O diálogo político do Centro Internacional de Conferências Joaquim Chissano (CICJC), em Maputo, está-se a arrastar em virtude de as partes defenderem o interesse de grupo em detrimento do nacional e não privilegiarem a razoabilidade das questões em debate. Esta é uma das posições defendidas por alguns académicos moçambicanos, que argumentam que o mesmo tem que evoluir para um formato mais largo e abrangente.
As conversações do CICJC entre o Governo e a Renamo entraram semana finda na ronda número 114 com as partes a extremar as suas divergências, o que deixou agastado os observadores, por um lado, e a sociedade em geral, por outro.
Na mesa do diálogo persistem desentendimentos no concernente ao desarmamento e integração das forças residuais da Renamo, na Polícia da República de Moçambique (PRM), nas Forças Armadas e na vida civil.
A outra divergência regista-se no chamado quarto e último ponto da agenda, atinente às questões económicas, em que a Renamo defende a paridade nos cargos de direcção das empresas públicas e ou participadas pelo Estado.
Devido aos impasses persistentes, os mediadores através do Professor Doutor Lourenço do Rosário já vieram a terreiro recomendar a solução da questão dos homens armados da Renamo, ao mais alto nível, isto é, através de uma cimeira entre o Presidente da República, Filipe Jacinto Nyusi, e o líder da Renamo, Afonso Dhlakama.
Para compreender todos os contornos em volta do diálogo, o nosso jornal foi ao encontro de alguns académicos entendidos na matéria que apelam às partes a abandonar o interesse de grupos e privilegiar o interesse nacional.
Os nossos entrevistados referem ainda que quando há vontade os interesses nacionais têm mais peso, dando como exemplo o que aconteceu ano passado aquando da revisão da legislação eleitoral.
Segundo as nossas fontes, no ano passado, porque o interesse nacional se sobrepôs a de grupos, as duas principais forças políticas (Frelimo e Renamo) uniram-se e produziram a lei eleitoral, assim como viabilizaram a cessão dos hostilidades militares que se registavam no país.
ABANDONAR O INTERESSE DE GRUPOS
Para o académico Guilherme Mblilane, as partes em diálogo tem que abandonar o interesse de grupos e negociar com neutralidade para que os moçambicanos voltem a desfrutar da paz.
Segundo afirmou, neste momento, quer o Governo quer a Renamo não estão preocupados com a maioria dos moçambicanos, puxando cada um a brasa para o seu lado.
“È necessário que as duas forças negoceiem com frontalidade. O que está acontecer é que a Renamo não está preocupada com os outros partidos políticos de oposição. Do lado do Governo, negoceia-se sim, mas também dá-se primazia ao interesse do grupo, porque se olharmos para os resultados eleitorais de 2014, nota-se que o Executivo perdeu e precisa de garantir a hegemonia económica que é uma alavanca para o poder político”,disse Mbilane acrescentando que: “o grupo que defende a Frelimo procura-se manter no pódio para obter ganhos e por outro lado, o da Renamo procura obter dividendos que ainda não conseguiu”.
No seu entender, o que está acontecer no diálogo é deveras preocupante, uma vez que estamos perante dois pesos pesados, que cada um quer mostrar a sua pujança política.
Para aquele académico, a Renamo ao conseguir 89 assentos contra 51 da legislatura anterior ganhou uma certa confiança de que pode condicionar o rumo dos acontecimentos.
“Os resultados das últimas eleições colocaram os dois grupos numa situação de quase intransigência, em que cada um entende que se não conseguir dividendos agora é para nunca mais. Por um lado, a Renamo obteve resultados que não esperava, enquanto a Frelimo viu reduzida a sua hegemonia de 192 deputados para 144. Portanto, isso levanta outro tipo de problemas que é o facto de ambas partes as pretenderem se organizar uma vez não saber o que lhes reserva a sorte nas eleições de 2019”,argumentou.
Dado ao impasse no diálogo, a nossa fonte apela as partes para recuar no tempo e no espaço para antes da revisão da legislação eleitoral e assinatura do Acordo de Cessação das Hostilidades.
Aliás, aquele académico defende a reformulação do actual formato, integrando outros actores, como sejam, a sociedade civil que já deu provas de solucionar os problemas ao propor o actual formato da Comissão Nacional de Eleições (CNE).
“A actual composição da CNE resultou de uma proposta técnica apresentada pela sociedade civil, um trabalho de sensibilização e esclarecimento, tanto do lado da Renamo, em Santundjira, através do seu líder Afonso Dhlakama, assim como do Governo, na pessoa do antigo chefe do estado Armando Guebuza”,explicou Mbilane.
Relativamente à partilha de cargos de direcção das empresas públicas e ou participadas pelo Estado, ideia defendida pela Renamo no ponto atinente às questões económicas, Mbilane diz não ter enquadramento tendo em conta o universo de partidos políticos, grupos de cidadãos e a própria sociedade civil.
“O que é necessário é repensar a integração técnica dos titulares dos cargos das empresas geridas ou participadas pelo Estado. Noutros países como por exemplo, EUA há postos que mesmo com a mudança dos dirigentes não são mexidos. Então era preciso repensar e potenciar a componente técnica e não depender do governo do dia”,explicou Mbilane para quem o critério tem que ser em termos de inclusão de cidadãos capacitados e sobretudo aceitar que pensar diferente não poder ser motivo de exclusão.
CIMEIRIZAÇÃO COM AGENDA ESTRUTURADA
O sociólogo, Hélder Jauana, diz que existem duas alternativas para se sair do actual impasse que se regista nas conversações do CICJC, sendo a primeira, um frente a frente entre as duas lideranças e com uma agenda específica e a outra hipótese que é levar o debate à Assembleia da República.
No seu entender, nesse encontro ao mais alto nível, o líder da Renamo deve apresentar aquilo que são as suas inquietações e que devem ter solução urgente e aquelas questões que precisam de ser analisadas a médio e longo prazos.
“O que tem que acontecer é que nesse encontro as partes não devem ficar presas à razão, mas sim à razoabilidade para a solução dos problemas. A Renamo não tem razão ao propor, por exemplo, a partidarização na indicação dos dirigentes das empresas públicas ou participadas pelo Estado, mas isso não signifique que o Governo não possa encontrar outra forma de solucionar esta preocupação”,disse Hélder Jauna, sublinhando que mais do que se procurar por achar quem tem razão, é necessário potenciar a razoabilidade dos problemas.
Relativamente à segunda saída que passa pelo Parlamento, aquele sociólogo considera este órgão, o mais privilegiado para o debate político. “Em nenhum momento podemos usurpar os poderes daqueles que nas eleições delegaram pessoas para decidirem por nós, que são os deputados eleitos democraticamente. Ao irmos ao diálogo do CICJC, estamos a esvaziar o mandato daqueles que delegamos para resolverem os nossos problemas, que são os deputados, e que têm mandato popular para fazer as leis e reflectir sobre os aspectos importantes do desenvolvimento do país”, disse Jauana, acrescentando que o Parlamento é o lugar próprio para o debate das questões centrais do Estado.
Sobre os assuntos a serem analisados no encontro ao mais alto nível, o nosso interlocutor afirmou que devem ser precedidos por uma análise a ser feita pelos emissários de ambas as partes.
“Estou a dizer que o Presidente da República tem os seus conselheiros e o Conselho de Ministros e o próprio Dhlakama tem os seus que devem analisar os expedientes antes da sua cimeirização ao mais alto nível. Tem que fazer um trabalho de corredor para trabalhar os termos de referência em que se apresentam os pontos de vista da Renamo, cuja solução é razoável e factível de ser ultrapassada,”disse.
Entretanto, Hélder Jauana observou que o Estado detém o poder para usar a força, mas que esta não é a melhor via para a solução dos problemas do país. “A Renamo não tem razão, o Estado tem, mas perante essa razão é preciso encontrar uma solução razoável e que permite ao Estado uma situação de desarmar os homens para que tenhamos uma paz efectiva. Estou a dizer que não basta ter razão, é importante haver uma solução razoável, porque a razão por si só não vai nos garantir a paz permanente”.
SABER GANHAR E PERDER
Por seu turno, João Pereira, docente universitário e director Executivo da Fundação MASC, é de opinião de que para se ultrapassar o impasse é necessário um encontro entre as duas lideranças em que cada uma das partes deve saber ganhar e perder.
“Logo à partida era previsível que o processo ia se arrastar por muito tempo. Ambas as partes não são insensíveis às questões candentes do país. Então fica muito difícil negociar, sobretudo porque não tem cultura de saber ganhar ou perder num processo negocial. A experiência mostra que cada uma das partes quer mostrar a sua pujança, quando as causas do diálogo são muito profundas e ultrapassam as balizas das partes em conversações”,disse João Pereira.
Acrescentou que para a materialização do diálogo, o país não pode depender apenas de duas forças políticas, uma vez que o debate de questões nacionais deve ser alargado a outros actores da sociedade civil, sector privado e o próprio cidadão comum, “porque quer a Frelimo, assim como a Renamo tem a mentalidade de que são os únicos que podem falar em nome dos moçambicanos, porque o primeiro libertou o país e o segundo introduziu a democracia multipartidária”.
“È verdade que eles têm a legitimidade e a força para falar, mas não em nome de todos os moçambicanos, porque os resultados eleitorais mostraram claramente que uma grande faixa dos cidadãos não votou, então assim, eles tem que alargar esse debate para mais actores”,frisou.
A outra saída, segundo aquele académico, passa por uma discussão séria sobre a reforma na forma de representação política ou eleição dos deputados. “As eleições legislativas devem ser por uma lista mista em que, por exemplo, uma grande parte dos deputados possam ser eleitos directamente no círculo eleitoral e a outra pela indicação dos partidos políticos, pois isso traz grande responsabilização aos próprios deputados”.
Instado a pronunciar-se sobre a reivindicação da Renamo nas chamadas questões económicas, a nossa fonte pronunciou-se nos seguintes termos: “Quando eles falam disso é para permitir que os grupos que nunca sentiram esse poder económico, a partir dai se sintam privilegiados”. Entretanto, reconheceu não ser solução ideal na medida em que nos próximos pleitos eleitorais poder haver mais partidos políticos no parlamento.“As empresas públicas têm que ser geridas por pessoas competentes e não por confiança partidária. Pode-se admitir a constituição de uma comissão independente para a sua supervisão que pode integrar representantes de partidos políticos”.
Para João Pereira as diferenças podem ser resolvidas gradualmente enquanto se discutem outras questões, uma vez não ser possível reunir consensos duma única vez. “Também tem que haver confiança entre as partes no processo de tomada de decisões, por exemplo, se for para enquadramento das forças residuais nas forças armadas ou em outras instituições, tem que haver garantias de que quando essas pessoas passarem para a reforma não vão se sentirem lesadas ou verem os seus direitos cortados”.
Nesse contexto, João Pereira tomou o exemplo sul-africano que na sua óptica foi um sucesso no que diz respeito à convivência democrática, tendo convidado a sociedade a reflectir sobre esta experiência.
“Na África do Sul conseguiram desde os sectores de segurança, ministério da defesa e outros órgãos de soberania uma inclusão de todos os elementos que saíram do sistema do Apartheid e do ANC e até hoje convivem mutuamente e o país continua a avançar normalmente. Porquê Moçambique passados 40 anos da independência não consegue criar confiança entre os políticos? Qual é o medo de ter elementos da Renamo no sistema de segurança neste momento de transição? Nós ainda estamos no momento de transição, porque acabamos de sair de uma guerra, cujas sequelas ainda persistem nas pessoas”,disse João Pereira, sublinhando que no Centro e Norte as pessoas vivem com medo devido à circulação dos homens da Renamo por um lado e das forças armadas, por outro.
Revisitar o Acordo Geral de Paz
– André Balate, PARENA
Para André Balate, do Partido de Reconciliação Nacional, a solução das divergências que persistem do diálogo passa entre outros aspectos, em rebuscar-se o Acordo Geral da Paz (AGP), assinado em Roma, em 1992, entre o Governo e a Renamo, sobretudo no que diz respeito à integração das forças residuais deste partido nas Forças de Defesa e Segurança (FDS).
No seu entender, há que se passar do discurso e encarar os factos com realidade, porque todos os problemas que o país está a conhecer no que diz respeito à estabilidade política derivam da não observância escrupulosa do AGP. “Não precisamos de inventar nada, porque tudo está escrito no AGP é só uma questão de revisitar este documento e tirar proveito do que ainda poder ser útil para a nossa democracia”.
Acrescentou que tudo que estamos assistir hoje deriva do facto de não se ter cumprido com o Protocolo atinente à integração dos desmobilizados da Renamo nas FDS.“Os poucos oficiais que haviam sido alistados no governo de Chissano foram retirados compulsivamente logo que este cessou as funções de Presidente da República”, afirmou Balate.
Acrescentou que mesmo os poucos que ainda integram as Forças Armadas não ocupam cargos do relevo o que até certo ponto frustra a liderança da Renamo. “Eles falam da discriminação dos seus elementos e não observância do estipulado no acordo de Roma, talvez seja esse factor que faz com que não entreguem a lista exigida pelo Governo à luz do Acordo da Cessação das Hostilidades, de Setembro último”.