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O dia nasceu cinzento. Inquieto e, sobretudo, sombrio. Os termómetros baixaram drasticamente e, de repente, ali pelas bandas do espectro
do Prédio Pott vejo um vulto encurvado. A silhueta era facilmente reconhecível. Olhei-o fixamente, não fosse me arrepender por deduções apressadas. Era mesmo Zeca, o Murace.
Músico de outras aragens
e de fino trato. Já
não é o mesmo. Foi tomado
por uma estranha
“erosão psíquica”.
Prefiro dizê-lo eufemísticamente.
Não gosto e acho que não tenho
legitimidade para dizer que está
louco. Maluco. Afinal, não somos
todos loucos? Já conhecia a sua
música, ainda que nunca tivesse
a honra de privar pessoalmente
com ele. “Mamana wa Murace”,
um tema cantado naquela harmoniosa
voz de Zeca Murace,
despertou em mim uma incontida
vontade de conhecê-lo e, acima de
tudo, poder conversar com ele e
perceber na essência as motivações
que o levaram a compor um
tema “arrepiante” que espelha
uma parte da realidade da nossa
sociedade.
De repente estava ali o Zeca,
nas masmorras de um prédio que
teima em ofender a Cidade das
Acácias. Em 2013 fiquei a saber
que ele padecia de uma dessas
malditas doenças neuropsiquiátricas,
mas, mesmo assim, não
deixei de querer conhecer aquele
homem prendado com um inquestionável
talento.
Fiquei triste ao vê-lo pela primeira
vez na zona da Ronil a deambular
com um rumo incerto.
Zeca estava “aéreo”, andava sem
poder pensar na inflação, nos impostos,
no ódio e no amor que se
esfriou neste mundo rude e cada
vez mais confuso. Zeca andava
descontraído, com um olhar alegre
viajando apenas no seu mundo e
sempre acompanhado da sua fiel
sombra. Sim, Zeca sempre gostou
de estar apenas consigo mesmo.
Andava sempre “ensimesmado”.
Mas eu queria mais, queria
entrar no seu mundo, poder conversar
com ele e fazer todas perguntas
que pudesse. Estava ciente
que não seria fácil, pois, a solidão
de Zeca não permitia a intromissão
de pessoas estranhas à sua
vida. Alguns o acham violento e
antipático e isso nalgum momento,
confesso, me deixou inibido.
À semelhança da vida nómada
dos ciganos, Zeca nunca foi estático.
Sempre foi dinâmico e a mobilidade
sempre o caracterizou.
Morou em vários sítios da cidade
das acácias: na Ronil, Karl Marx e
outros lugares que não cheguei a
conhecer. Foi quando justamente
passou a morar no histórico Prédio
Pott que a minha vontade de
se aproximar de Zeca ficou mais
aguçada. Senti-me cada vez mais
perto dele e pude realizar um desejo
que há muito perseguia. Zeca
vive num edifício que foi construído
por Gerard Pott e projectado
por Ing Anderson. A empreitada
esteve a cargo do T.D Turnbull,
uma empresa de construtores da
então União Sul-africana. A sua
conclusão só foi possível em 1905
e as obras estiveram avaliadas em
21 mil libras, qualquer coisa como
um milhão e duzentos e dezoito
mil meticais.
Zeca não vive em um lugar
qualquer. Vive num edifício histórico,
embora se encontre em
ruínas e em estado deplorável, foi
e ainda é património cultural do
país. Do Prédio Pott restam apenas
lembranças de um edifício que
detém um simbolismo histórico
que foram levadas com o maldito
incêndio, no dia 12 de Dezembro
de 1990, que devorou quase por
completo aquele edifício, que ostenta
uma arrojada estrutura arquitectónica.
Apenas a Alfaiataria Chique
e os Estúdios Corte Real escaparam
à fúria das chamas que
levaram consigo a Orquídea
Oriental, a Papelaria e Livraria da
Empresa Moderna e tantas outras
residências ali implantadas.
Tal como vai se desmoronandoaos poucos o Pott, assim também
vão se desfazendo os retalhos
da vida de um homem que em
tempos esteve em vários palcos,
alegrou corações, criou reconciliações
em amores falhados e serviu
de inspiração a muitas almas com
vontade de aprender.
É também nas avenidas
Samora Machel e 25 de Setembro
que Zeca palmilha diariamente à
procura de alguém que lhe leve
os seus fantasmas, aqueles ditos
pelo músico português Pedro
Abrunhosa, na sua música intitulada
“Quem Me leva os Meus
Fantasmas”. Estas avenidas também
têm um grande significado no
contexto histórico do país, por razões
óbvias: primeiro porque uma
ostenta o nome daquele que foi o
primeiro presidente de Moçambique
pós-independência e segundo
porque 25 de Setembro é o dia das
Forças de Defesa de Moçambique.
Reza a História de Moçambique
que foi nesta data, no ano de 1964,
que guerrilheiros da Frente de Libertação
de Moçambique (FRELIMO),
encabeçados por Alberto
Chipande, assaltaram o Posto Administrativo
do Chai, Província de
Cabo Delgado, norte do país, iniciando
a Luta Armada de Libertação
Nacional.
Enfim, são várias as razões
que justificam a grandeza dos
locais que anteriormente me referi
e que conferem igualmente
grandeza a Zeca pelo facto de ser
um artista que também deu o seu
contributo na construção da história
do país.
Mas, voltando ao almejado encontro.
Até aqui tudo parecia fácil,
mas não passou de uma mera ilusão.
Desde o dia em que Zeca passou
a morar no “Pott” (2014), inúmeras
foram as vezes que esbarava
com a parede na cara. Era raro
encontrar Zeca em seus intervalos
de lucidez. Ora estava em maré
alta, ora baixa. Tive que esperar
que passasse um ano para privar
com Zeca. Não foi fácil. Calculo
que devem imaginar o que significa
entrar no mundo de um homem
que vê o seu semelhante como
uma autêntica ameaça! Zeca encontra-
se numa outra dimensão,
aquela que muitos chamam-na de
“loucura”. E nós, em que mundo
estamos Zeca? Mas essa é outra
conversa…
Voltava eu da academia e,
como de costume, passo defronte
dos restos do Pott, a humilde residência
de Murace. Quis oferecer-
-lhe umas moedas para comprar
cigarros. Se calhar não devia
oferecer-lhe cigarros. Confesso a
“mea culpa”.
Naquele dia a “maré estava
baixa”. Zeca estava calmo a concertar
uma parte da estrutura
metálica que cobria o “seu lar”.
Timidamente aproximei-me dele,
na minha mão trazia o meu tablet,
escutando “Do I Have To Say The
Words?” de Bryan Adams. Literalmente
perguntava a Murace: “tens
algo a dizer?”. Perguntei-lhe cheiode firmeza, “o que fazes Zeca, a
tua casa está a cair? queres que
te ajude?” Zeca virou-se para mim
e com um sorriso estampado no
rosto, pediu para continuar a escutar
a música. Os olhos do Zeca
reluziam como se de uma criança
se tratasse. Não sei ao certo dizer
o que estava a pensar. Zeca estava
feliz e a sua expressão facial revelava
esse sentimento.
Posto isso, Zeca retornou a
sua actividade. Prontifiquei-me
em ajudá-lo a concertar o seu
aconchego. Zeca aceitou e me fez
pegar uma chapa. Lá estávamos
nós a arranjar a sua casa, onde se
sente seguro e encontra a paz de
que tanto precisa.
Ele vestia apenas umas calças
ganga de “jeans”, arranjadas num
desses fardos de roupa usada,
acho eu!. No seu corpo era possível
contemplar cicatrizes e algumas
tatuagens que revelavam
uma parte daquilo que foi e é a sua
vida neste mundo que está prestes
a entrar em apocalipse.
Depois disso Zeca, de forma
educada tal como o fazemos quando
recebemos visitas, tratou-me
com hospitalidade e ofereceu-me
uma cadeira improvisada, acredito
eu ser uma caixa que envolve
um computador ou coisa parecida.
Sentamo-nos e continuamos
a conversar, escutando música.
Aquilo de que ele mais gosta.
Não escapei aos olhares curiosos
dos transeuntes que diariamente
se fazem naquela avenida.
Eram olhares incrédulos e de alguma
expectativa pessimista quanto
à minha ida à humilde residência
do Zeca. Fui audaz e não me deixei
levar pelas bocas da gente do mal
dizer. Para muitos, Zeca é imprevisível
e no seu mundo tudo pode
acontecer. Comigo não aconteceu
nada pois, a minha missão era de
paz e de pura amizade. Zeca não
fazia ideia de que há muito eu esperava
que ele me recebesse.
O grande momento da minha
recepção à casa do Zeca aconteceu
quando ele me convidou a
entrar num dos seus compartimentos
para mostrar o seu espólio
musical. Mostrou-me o seu
repertório de clássicos gravados
em fitas magnéticas, conhecidas
por cassete, de certeza que a nova
geração não sabe o que é isso.
Muito menos sabe o que significa
rebobinar com recurso a uma
esferográfica várias vezes a mesma
cassete até a fita cortar. Para
quê usar isso se existem ipods,
disc memory, disco compats e por
aí em diante? Zeca também não
sabe o que é um tablet, Zeca nem
sequer faz ideia do que seja isso.
Ele parou no tempo. O “Hi- Tec”
( tecnologia avançada) pouco lhe
diz. O que ele quer na verdade é
ter um leitor de cassete e escutar
os seus sons e compor novas
músicas. Aliás, nalgum momento
da conversa Zeca pediu-me uma
esferográfica e escreveu algo que
vinha da sua imaginação.
Fiquei arrepiado, senti-me
pequeno para receber tamanha
hospitalidade e de poder ver a colecção
de música que Zeca ainda
conserva em cassetes. Confesso
que gelei a espinha de tanta emoção.
Tinha lá cassetes de bandas
como The Rolling Stones (álbum
Stripped), Garry Moore, Billy Joe,
Luke Dube, Sucessos de Moçambique
( RM Volume 12), Roberto Carlos,
Bryan Adams e outros. Como
é que um homem desses pode ser
maluco?
Senti que mesmo perante alguns
lampejos de lucidez, Zeca
continua fiel às suas origens e acima
de tudo respira música e a sua
alma fala música. Ele queria que
eu pusesse as músicas a tocar, só
que não podia porque não tinha
ali um leitor para cassetes. Zeca
insistia que eu tocasse mesmo
assim. Mas depois de uma longa
explicação o convenci que não seria
possível.
Estávamos conectados na
mesma galáxia, ofereceu-me um
cigarro, disse-lhe que já havia deixado
de fumar porque os cigarros
não me faziam bem. A dada altura
perguntou-me sobre nomes de algumas
pessoas das quais não as
conhecia. Não menti, respondi-lhe
prontamente que não as conhecia.
Senti nalgum momento que lhe havia
causado alguma frustração por
ter defraudado a sua expectativa,
mas bolas eu não as conhecia…
Na hora de despedida Zeca fez
questão de me dar emprestado
três cassetes ( The Rolling Stones,
Garry More e uma colectânea de
música moçambicana) para que
fosse escutar e que depois trouxesse
outras novidades para ele
se deliciar. Disse-me também
para que voltasse para lhe ajudar
a concertar uma das janelas
do seu quarto. Abracei-lhe e prometi
regressar com um leitor de
cassetes para fazer companhia
às longas horas ociosas de solidão
que perseguem o meu amigo
Zeca Murace… Alguém ajuda-me
a comprar um aparelho com leitor
a cassete para Zeca poder escutar
sossegadamente as músicas que o
alimentam a alma e, quiçá, poder
ter a oportunidade de escutar com
ele “Mamana wa Murace”?
Raimundo Zandamela
raizandamela@gmail.com
Fotos de Luís Muianga e Raimundo Zandamela