Texto de Jaime Cumbana e Fotos de Carlos Uqueio
A Assembleia da República (AR) reprovou, quinta-feira última, na generalidade, o quadro institucional do Projecto das Autarquias Provinciais (PAP) proposto pela Renamo, por considerar que contém vícios jurídico-legais insanáveis. Tal foi possível graças ao voto da Frelimo, enquanto a oposição disse “sim” ao projecto.
O chumbo do projecto foi viabilizado pelo voto da bancada maioritária da Frelimo com 138 votos contra 82 da oposição formada pelo proponente (Renamo) e pelo Movimento Democrático de Moçambique (MDM), num total de 236 deputados presentes no plenário.
Trata-se de um projecto depositado em Março último com 73 artigos e tem como objecto a institucionalização das autarquias provinciais no âmbito da descentralização administrativa.
Na sua fundamentação, a Renamo refere que a Constituição da República de Moçambique (CRM) de 2004 é fruto de transformações políticas, económicas, sociais e culturais que se verificam no país, à luz da mesma e criou mais uma janela para a descentralização e aprofundamento da democracia, ao prever a existência de outras categorias, superiores ou inferiores, à circunscrição territorial do município ou povoação.
Segundo aquele partido da oposição, o seu projecto vem ainda responder aos anseios da população em ver resolvidos os problemas locais, nomeadamente, o desemprego, transporte, saúde, ensino, habitação, comércio, feiras, mercados entre outros.
O deputado da Renamo e membro da Comissão Permanente, José Manteigas, referiu durante a apresentação do projecto de lei que sendo fiel ao princípio de gradualismo que vem sendo seguido na instalação das autarquias de vila, cidade e município, o Projecto das Autarquias Provinciais (PAP) propõe a criação, numa primeira fase, das autarquias de nível provincial em Niassa, Nampula, Zambézia, Tete, Manica e Sofala, onde o partido e o líder da “perdiz” Afonso Dhlakama tiveram a maioria dos votos expressos.
“A autarcização das províncias é uma forma de consolidar o Estado de Direito democrático baseado no pluralismo de expressão, organização política, no respeito e garantia dos direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos”, argumenta Manteigas.
Manteigas diz que, afirmar o contrário em relação ao projecto da Renamo, é alegar que as actuais autarquias são também inconstitucionais.
“A verdadeira essência e tarefa da administração autárquica consiste na resolução dos problemas locais pelas próprias populações integradas nos órgãos autárquicos através de eleições”, concluiu Manteigas.
Importa referir que a iniciativa da perdiz ganhou corpo após a Comissão Nacional de Eleições (CNE) anunciar o partido Frelimo e seu candidato, Filipe Nyusi, como vencedores das eleições de 15 de Outubro passado. O líder do partido, Afonso Dhlakama iniciou uma série de deslocações e pronunciamentos de não-aceitação dos resultados por considerar que houve fraude.
Como forma de evitar uma eventual guerra e compensar a Renamo pela alegada fraude, Dhlakama propunha a partilha do poder através de um Governo de Gestão, em seguida solicitou que fossem indicados elementos daquele partido como governadores, administradores e por ai em diante.
Depois da tomada de posse do Governo de Filipe Nyusi, a 15 de Janeiro passado, o líder daquele partido mudou de posição passando a falar da Criação de Regiões Autónomas no centro e norte do país, onde ele e a Renamo tiveram a maioria de votos.
Nesta ordem de ideia, os presidentes dos conselhos provinciais seriam designados pelo candidato mais votado nas eleições, conforme os resultados constantes do Acórdão do Conselho Constitucional.
PARECERES DAS COMISSÕES
Antes do debate em plenário, o documento foi submetido às Comissões dos Assuntos Constitucionais, Direitos Humanos e de Legalidade (1ª Comissão) e da Administração Pública e Poder Local (4ª Comissão) para que emitissem os respectivos pareceres.
Segundo o presidente da 1ª Comissão, Edson Macuácua, o órgão por si dirigido é pela paz, estabilidade política e bem-estar dos moçambicanos, por isso defende que, a solução para diferendos políticos deve ser encontrada no espírito de diálogo dentro do quadro constitucional vigente.
Macuácua entende que as soluções políticas supraconstitucionais devem ser atendidas ao nível de uma revisão constitucional, pois o Estado subordina-se à Constituição e funda-se na legalidade e as constitucionais prevalecem sobre todas as restantes normas do ordenamento jurídico.
“Havendo vontade política para aprofundar a descentralização, de modo a alterar as formas de acesso e exercício do poder político, a forma do Estado, o Sistema eleitoral do Governo deve ser em sede de uma revisão constitucional precedida de um ampla consulta nacional e um debate estruturado, alargado, envolvendo todas as forças vivas da sociedade”, frisou Macuácua.
O Presidente da 1ª Comissão sublinha que a Assembleia da República não tem legitimidade nem competências para repescar os resultados das eleições de 15 de Outubro último para legitimar a criação de órgãos supervenientes.
Para a 4ª comissão, ( de Administração Publica e Poder Local), a norma revogatória nada dispõe acerca da legislação atinente ao quadro jurídico-legal das autarquias locais, o que significa que continuam a existir autarquias de nível de cidade, vila e povoação numa relação de conflitualidade com as autarquias de nível provincial.
Segundo o presidente desta Comissão, Lucas Chomera, da análise feita ao Direito comparado mostra que as autarquias inferiores são entidades autónomas as do primeiro grau, e independentes das autarquias superiores, continuando a manter as suas competências intangíveis e sem nenhuma interferência no exercício das suas funções. Dai que, as autarquias superiores sejam entidades do segundo grau com funções de coordenação das actividades das autarquias inferiores, bem como das zonas intermédias entre o nível central e município.
Chomera acrescentou ainda que a constituição de autarquias de segundo grau ou superiores obedece, em quase todo o mundo, o princípio de subsidiaridade, que sempre significou que uma entidade pública de grau superior só deve desempenhar as tarefas que não sejam prosseguidas por entidades públicas de grau inferior.
“Assim, as autarquias provinciais não podem ocupar-se ou imiscuir-se em actividades que melhor seriam prosseguidas pelos municípios e estes pelas povoações e pelos órgãos locais do Estado”, ajuntou Chomera.
Neste sentido, as duas Comissões, a 1ª e 4ª, recomendaram ao plenário a apreciação negativa do Projecto de lei-quadro das Autarquias Provinciais, por estar enfermado de vícios insanáveis de inconstitucionalidade e de ilegalidade. A Renamo votou vencido na tomada de decisão final em ambas comissões por considerar que o projecto tem mérito e não viola a constituição e demais leis vigentes.
Projecto ferido de inconstitucionalidade
– Francisca Domingas, da Frelimo
Francisca Domingas disse que a bancada parlamentar da Frelimo votou contra o documento proposto pela Renamo porque o projecto está ferido de inconstitucionalidade e surge na sequência dos pronunciamentos públicos daquela formação política e do seu líder de não aceitarem os resultados das eleições gerais de 15 de Outubro passado.
Nesse escrutínio, segundo a interlocutora, o povo deu vitória a Frelimo e seu candidato Filipe Nyusi, em confiança ao manifesto eleitoral apresentado pelo partido no poder, também os observadores nacionais e internacionais consideram que as eleições foram livres, justas e transparentes, depois foram validados e proclamados pelo Conselho Constitucional.
“A bancada parlamentar da Frelimo ciente das suas obrigações constitucionais e regimentares votou contra o projecto de lei, pois visa acabar com as autarquias locais, passando as mesmas a serem governadas por províncias com dois governos”, disse Francisca Domingos.
Não se pode mudar a vontade do povo
– Eduardo Namburete, da Renamo
Segundo o deputado da Renamo, Eduardo Namburete, o projecto é a sistematização dos anseios da população de ver reposta a legalidade e justiça das eleições passadas.
“Podem ter a consciência que com ou sem o voto da maioria, Moçambique seguirá em frente, porque Moçambique é maior do que a bancada da maioria e da Assembleia da República”, disse Namburete.
O deputado sublinhou que a proposta foi encaminhada à Assembleia, não porque o povo não tenha capacidade de tomar as suas decisões, mas porque ainda restava uma esperança de que o Parlamento estivesse ao serviço do povo e não de interesses particulares.
Segundo Nambuerete, assumindo que o projecto esteja enfermado de vícios jurídicos e ilegalidade, a Assembleia da República tinha uma escolha a fazer: mudar a vontade do povo ou mudar a lei para que esta considere o desejo do povo inconstitucional. Ele referiu que não se podia mudar a vontade do povo, mas sim mudar a lei para que se conformasse com o desejo do povo.
Pacto entre as três bancadas
–Venâncio Mondlane
O Movimento Democrático de Moçambique (MDM), que também votou a favor do projecto, referiu através do deputado, Venâncio Mondlane, que comungam, na essência, com a iniciativa da Renamo, acreditando que seja possível chegar-se a um meio-termo parlamentar que trouxesse tranquilidade para os moçambicanos.
Mondlane fala de quase 18 milhões de moçambicanos que estão a viver em zonas não autarcizadas e que são geridos pelo Executivo. Por essa via, o MDM sugeriu não em desagravo à proposta do preponente que seja possível numa determinada província onde um partido tenha ganho as eleições sugerir três nomes, que depois seriam sancionados para nomeação pelo Presidente da República, para Governador da província.
“Aqui teríamos uma plataforma de equilíbrio entre o respeito constitucional e acomodar o consenso do aprofundamento da descentralização”, vincou o deputado.
Ele foi mais longe no sentido de que até às próximas eleições se criasse um pacto entre as três bancadas para que nessa ocasião fossem eleitos os governadores provinciais através de uma eleição directa ou indirecta (cabeça de lista).
Texto de Jaime Cumbana
Fotos de Carlos Uqueio