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Morreu uma super-estrela nesta terra de memória curta

Por admin

Numa tarde, realizava cinco provas. Na tarde seguinte, outras cinco. Entre corridas, saltos e lançamentos, tinha sempre que ficar bem posicionado. Era decatlonista – conjunto de dez provas – especialidade que consagra o atleta mais completo no atletismo.

 Foi assim que se consagrou Cândido Coelho, não só em Moçambique, como em todo o espaço português de então.

A par de José Magalhães e Lurdes Mutola, foi considerado pelo governo, o atleta moçambicano do século. Mas como viveu e pugnou num país de memória curta, tanto na hora da distinção dos heróis desta Pátria, como no momento em que deixou de pertencer ao mundo dos vivos, os seus feitos, até hoje inigualados, foram esquecidos.

GINÁSTICA FOI O PRIMEIRO AMOR

Não lembraria ao diabo, mas terá lembrado a Deus, ou a quem decide sobre as capacidades dos desportistas, concentrar num só homem tantos e tão qualificados atributos. Cândido Coelho, atleta do Século, é o senhor dos anéis, pois foi estrela no hóquei em patins, ginástica, atletismo, basquetebol e futebol – modalidades em que triunfou a nível mais alto.

Com quatro/cinco anos, conheceu o clã Craveirinha e passou a conviver com os filhos do poeta Zeca e Stélio, na Mafalala. A Associação Africana possuía então uma classe de ginástica que se tornou notada ao fazer digressões de Sul a Norte de Moçambique. Foi o primeiro amor desportivo de Cândido Coelho. Por lá evoluía também a Flora, mais tarde esposa de Eusébio, o Pantera Negra.

A criação daquela classe de ginástica era também uma manifestação de afirmação política. É que, nessa altura, a modalidade apenas era praticada por brancos, que defendiam que os negros apenas tinham jeito para o futebol.

O segundo amor, ainda juvenil, foi o hóquei em patins, integrando a equipa de Ferroviário, que se sagrou campeã. Mas o futebol continuava a ser um “íman” irresistível. Ingressou no desporto-rei do Desportivo. Corria muito, chutava na passada e marcava muitos golos. Mais tarde, também como federado, jogou basquetebol nos tempos áureos desta modalidade. Isso sem falar nas passagens esporádicas pelo voleibol e futebol de salão.

ATLETISMO E ECLETISMO

Chichorro, figura de proa da pintura, que era então a estrela do salto à vara do Desportivo, havia sofrido uma lesão. Estava-se a uma semana dos Campeonatos de Atletismo de 1968. António Matos, “Tau”, o treinador, não sabia o que fazer para lançar alguém que conquistasse no mínimo os três pontos do terceiro lugar que, pelas suas contas, lhe garantiriam o título na pontuação final. Na altura, a rivalidade com Sporting e Ferroviário era enorme.

Vários novatos se candidataram à experiência, sem conseguirem pular acima dos dois metros.

– “Posso experimentar?” – a voz, tímida, vinha de Cândido Coelho, ainda nos seus verdes 16 anos. Ele era ponta-de-lança dos juniores “alvi-negros” mas, no defeso do futebol, ajudava a equipa de atletismo a amealhar pontos nas corridas. Mas nunca antes lhe passara pela cabeça experimentar os saltos.

Uma dura vara de alumínio foi entregue ao jovem que antes apenas havia tido a experiência, a brincar, com varapaus de bambu, longe das pistas. A fasquia foi colocada em 1 metro e oitenta centímetros. Facilmente a transpôs. Depois… foi voando, voando, qual imperador das alturas, até ser obrigado a parar, após ultrapassar os 2.80 metros.

“VOU SER CAMPEÃO”!

O grito vinha do “Tau”, o treinador, feliz pela descoberta. Ele berrava de forma a ser ouvido no campo do vizinho Sporting. Depois mandou parar as tentativas, não fosse o jovem lesionar-se.

Nessa semana, já em competição, Cândido Coelho pulou três metros, na primeira aparição no salto à vara. Estava descoberto um dos maiores atletas da especialidade, detentor de um recorde até aos dias que correm.

Mas o futebol continuava na alma e só nodefeso se divertia a “pulverizar” recordes do atletismo, surpreendendo tudo e todos, em várias especialidades.

Mas não tardou a que “rebentasse a bronca”: por qual das modalidades iria optar, se brilhava nas duas?

Craveirinha aconselhou-o a seguir o atletismo. Pôs as cartas na mesa desta maneira: “se com tão poucos treinos os resultados eram aqueles, até onde poderia ir quando devidamente preparado”?

O jovem acatou o conselho mas o amor pelo futebol não foi posto de parte, passando apenas para plano secundário. Deixou o futebol no Desportivo, mas em Ressano Garcia, realizava jogos ao domingo, em “fugas” encetadas após as provas de sábado. E assim, no meio de tanto desporto, ainda tinha tempo para estudar à noite, pois o seu pai faleceu quando era ainda uma criança.

CONSAGRAÇÃO ALÉM-FRONTEIRAS

Decorria o ano de 1972 e em pleno serviço militar, Cândido veio de férias a Lourenço Marques. Decidiu-se por realizar algumas provas, apesar de estar há mais de um ano fora das pistas. No salto em altura pulou 1.93, o que passou a ser o recorde de Moçambique. Noutras provas as boas marcas de sempre.

Os nacionais de então estavam à porta e iriam reunir em Lisboa as selecções das colónias, mais as representações das províncias portuguesas continentais e insulares. Craveirinha sugere-lhe que integre a selecção de Moçambique. Cândido não acede, com receio de uma punição militar, caso não regressasse ao Niassa, terminadas as férias.

Encetou o regresso, penoso, que durou dois dias. Porém, espantado, e mesmo antes de descarregar as mochilas, viu o comandante da unidade mostrar-lhe uma mensagem assinada pelo general Kaúlza de Arriaga, comandante-em- chefe das forças armadas, a ordenar a imediata presença na capital para integrar a representação que partiria para Lisboa. Craveirinha havia “movido montanhas” para obter a autorização!

Recomeçou a odisseia do regresso, sempre com o perigo nas matas à espreita. E, quando finalmente chegou a Lourenço Marques, faltava apenas um dia para a partida. Foi só tratar dos papéis e entrar para o avião.

SANGUE NO TARTAN DO JAMOR

No Estádio do Jamor, a azáfama era visível. O seu grande adversário no decatlo era o Tadeu de Freitas, que vivia na Suécia e que vinha de propósito para tomar parte nos campeonatos. O tempo para treinar era de apenas dois dias. E, para agravar, no salto em comprimento, abriu-se-lhe uma grande ferida no dedo da mão direita. O médico recomendou-lhe o abandono da competição. Pela frente, havia ainda, entre outras provas, o salto à vara, os lançamentos de peso e dardo, em que a mão lesionada teria que ser chamada.

Esquecendo a dor e pensando apenas em vencer, foi realizando as provas, espantando tudo e todos. Até a si próprio. Antes da última corrida, levava já uma vantagem pontual confortável e apenas necessitava de cortar a meta, para obter a pontuação mínima: “foi o maior suplício da minha vida”.

– ´´Os 1500 metros eram a prova de que eu menos gostava. Estava cheio de febre, mas sentia que não podia desistir. A ferida sangrava e os meus calções brancos ficaram vermelhos de tanto limpar o sangue que brotava do dedo´´.

O certo é que, após metade da prova, todo o batalhão lhe passara à frente. Exausto, perdera a capacidade de reacção. A 150 metros da meta, começou a andar aos zigue-zagues. Os colegas da delegação saltaram para a pista, quase empurrando-o para a meta. Ia meio inconsciente, mas despertou a 50 metros da meta devido aos gritos que o iam mantendo em pé. Depois…

– ´´Fechei os olhos, aproveitei o balanço que trazia e caí para a frente, desmaiado. Estiveram quase meia hora a reanimar-me e, quando subi ao pódio, como Campeão do decatlo, tive que ser amparado por duas pessoas´´.

Na sua edição do dia seguinte, o prestigiado jornal ´´A Bola´´, titulava: ´´Sangue no tartan! Cândido Coelho supera a dor!´´.

 

Renato Caldeira

 

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