Não faltam comportamentos que se inserem nesta descrição. Sob muitos aspectos, os animais que parecem sentir a morte de maneira mais próxima da dos seres humanos não são os mais
próximos de nós geneticamente – os grandes símios – mas sim os elefantes. Há muito que a literatura é pródiga em relatos dos seus ritos funerários e do tratamento quase reverencial prestado aos restos mortais que ocorre nas manadas.
O zoólogo britânico Douglas- Hamilton ficou particularmente impressionado com a morte, em 2003, de um elefante africano chamado Eleanor, num parque do Quénia. Eleanor era a matriarca da manada e tinha dado à luz seis meses antes. Já muito doente, caiu prostrada, na presença de outra fêmea. Esse elefante, de nome Grace, lançou um barrido, abanou Eleanor e tentou erguê-la com os dentes. Na manhã seguinte aproximou-se outra fêmea, Maui, e ficou junto de Eleanor, abanando-a e examinando-a. Durante toda semana o filhote de Eleanor e as fêmeas da manada visitaram o cadáver. Continuaram a aparecer, depois de os trabalhodores do parque terem removido os dentes, para desencorajar os ladrões; continuaram a aparecer, depois de os necrófagos terem começado a comer os seus restos mortais. O bebé fossou com a tromba o corpo de Eleanor, tentando mamar também nas outras fêmeas mais jovens. Mas nem o leite apareceu nem a mãe se mexeu e a cria não tardou a morrer. Os grandes símios revelam um comportamento diferente. Uma razão pode ser o facto de sua capacidade cerebral superior lhes permitir aprender a permanência e inevitabilidade da morte de um modo diferente dos outros animais. O primatólogo Frans de Waal, director do Centro de Ligações Vivas da Universidade de Emory, refere uma cena que observou quando um grupo de chimpanzés encontrou uma víbora do Gabão. Eles só se aproximaram o suficiente para lhe bater com um pau, até que uma fêmea a apanhou e bateu com ela no chão, matando-a. Num instante, o animal temido tornou-se num objecto inofensivo, com os jovens a examinarem os seus dentes e a usarem-nos como colar. “Nenhum deles esperava que pudesse voltar à vida”, nota Waal. Morte é morte. E essa consciência, que atinge os seres humanos em terríveis vagas de crise existencial, ao longo de meses, também torna as coisas mais difíceis para os primatas.
“ Os indícios sugerem que eles sabem que, quando um indivíduo fica imóvel por muito tempo, a esperança de reanimação é diminuta.” Esperança diminuta não é o mesmo que esperança nenhuma, e os seres humanos são mestres nessa rejeição desesperada da morte. Nos animais, este comportamento parece manifestar-se na estranha prática de transportar os cadávers. Os bonobos e babuínos carregam consigo os seus bebés mortos, mesmo depois do cheiro denunciador da decomposição – ao qual os animais estão em geral bem atentos ter começado. Os bebés chegam a mumificar nas suas mãos. É extremamente pouco aconselhável andar pela floresta cheia de predadores com alguns quilos do que é literalmente “peso morto” mas, ainda assim, as fêmeas correm o risco. Num caso registado na Guiné, uma mãe transportou o seu bebé durante 68 dias.
Hormonas em alta
O livro de King conta histórias igualmente pungentes de desgosto e rejeição, em todo o reino animal. Como a de Willa, o gato siamês que passava os dias a deambular pela casa, miando e revisitando os lugares onde a sua recém-falecida irmã Carson costumava estar. Ou a de Hachiko, o cão Akita japonês que acompanhava o dono diariamente à estação de comboio, quando este ia para o trabalho, e voltava ao fim da tarde para o esperar.
Depois de o dono morrer, o cão manteve a sua vigília durante dez anos, indo todos os dias à estação e voltando tristonho (e sozinho) para casa.
Na medida do que é possível avaliar cientificamente sobre o que se passa na cabeça dos animais em momentos como estes, os indícios sugerem que se trata de reacção ao desgosto. O stress, incluindo o tipo de stress que se segue à notícia de uma morte, conduz à segregação da hormona cortisol, nos animais e seres humanos; o cortisol, por seu turno, pode causar a produção de ocitocina, muitas vezes designada “hormona do abraço”. É o nível de ocitocina que dispara nos pais, depois de um bebé nascer, que nos leva a todos, de maneira subtil, a procurar ligações e filiações.
A investigadora de primatas, Anne Engh, seguiu babuinos no Botswana para determinar como reagiam a uma das experiências mais traumáticas que uma comunidade animal pode experimentar: a morte de um dos seus por um predador. Depois de um ataque, colhia amostras fecais de elementos do bando e procurava sinais de aumento dos marcadores de stress glucocorticoides “GC”. Durante um mês, o GC era elevado em todos os indivíduos que tinham assistido à morte, mas ainda mais elevado nos 22 que tinham ligações familiares ou sociais mais próximas da vítima.
A resposta está no cérebro
Nos seres humanos, o luto é mediado pelo córtex frontal, pelo núcleo accumbens e pela amígdala, uma estrutura profunda que processa as emoções. Partilhamos essa anatomia básica com muitos outros animais, embora em algumas espécies essas estruturas estejam mal desenvolvidas. O cérebro das aves não tem paralelo com o nosso, mas possui uma amígdala, e os corvos, em particular, têm um grande córtex frontal e um hipocampo bem desenvolvido, que processa a memória.
Marzluff realizou estudos em que os corvos são capturados por um indivíduo com uma máscara e depois alimentados e cuidados por alguém com uma máscara diferente. Mais tarde, as aves são injectadas com um marcador radioactivo e expostas quer à máscara de captura, associada ao stress, quer à máscara alimentar, com associações agradáveis, e ainda a uma terceira máscara que nunca viram, e que não permite associações. As aves são depois anestesiadas e colocadas numa máquina de tomografia por emissão de positrões, que lê a localização do marcador no cérebro. De forma consistente, os corvos que olham para a máscara aterradora revelam maior activação da amígdala que os outros. Quando se repete a experiência mas se lhes mostra um corvo anestesiado que parece morto, a activação ocorre no hipocampo, sugerindo que estão a formar uma localização de memória que diz, efectivamente: “este é um lugar perigoso; evita-o”.
“Os corvos formam casais permanentes e podem acasalar durante 20 anos”, lembra o investigador. O que ele gostaria de determinar era se os corvos revelariam uma activação do hipocampo, se o animal exibido fosse uma cria ou um companheiro.
Mas matar um animal, nestas circunstâncias, apenas para realizar a experiência, está fora dos limites da decência e da ética. Por muito atractivos que sejam os trabalhos de laboratório e as observações de campo, ainda há quem desconfie dos resultados.
Afinal, os corvos podem velar um cadáver em sinal de respeito ou simplesmente estar a investigar o que o matou, para não acabarem da mesma maneira. E quanto a cobrir o cadáver com ervas e troncos? Em muitas espécies, o odor da morte desencadeia
comportamentos fúnebres, que protegem os sobreviventes dos restos mortais de outros, pois estes podem causar doenças. Os gatos, que aparentemente procuram pela casa o companheiro falecido, podem estar apenas a habituar-se a uma nova rotina e a marcar território. Mesmo o lendário cão Hachiko podia estar a movimentar-se por nada mais que uma rotina, deslocando-se diariamente à estação de comboio porque…bem, porque sempre fora assim. Contudo, algo em nós rejeita um ponto de vista tão redutor. Sofrer profundamente, argumenta King, é o preço que os seres humanos pagam por amarem profundamente. Mas não é demais sugerir que a mesma equação, ainda que numa escala menor, se aplique também aos animais.
(In Time/Visão)