Não sou eu. São as músicas.
Eu sou só o carteiro. Eu entrego as músicas– Bob Dylan
Amúsica escondida não tem valor – Aulo Gélio. Não podia haver palavras mais apropriadas. Carlos Gove, deve ter ouvido esse chamamento. A resposta é o disco Massone, ( “Ir para frente” em
língua cicopi [tchitchôpi]). Gove, como se sabe, é um músico com uma longa história no nosso universo artístico. Iniciou a sua carreira no grupo Os Surpreendentes em Inharrime, Inhambane, nos anos 80. Depois, na companhia de Roberto Chitsondzo, Tchika, Pedro Langa, David Macuacua, Zeca Alage e Arsénio, fundam o Conjunto Ghorwane, uma das bandas mais longevas da nossa música. Em 1999 inicia uma incursão pela linha Afro-Jazz e junto com Jorge César, Paíto Tcheco e Jojó, fundam o grupo Nondje. Entretanto, Gove tem trabalhado com muitos artistas, com particular destaque para a Banda Vuka da Mingas.
Massoneé um disco equilibrado. Fugindo ao protagonismo que seria natural para um primeiro disco, Carlos Gove teve a sabedoria suficiente para não chamar a si todo o protagonismo. Convidou vários artistas para fazer a sua estreia discográfica. Ras Haitrim, Yolanda Chicane, Paito Tcheco, Jorge César, Ta-Basily, Stélio Zóe, Bernardo Honwana, Nelton Miranda, Zito Nhacocane, Majeschoral, Samito Matsinhe, Cheny Wa Gune, Orlando Venhereque, Jorge Domingos, Moreira Chonguiça, Sheila Jesuita, Simão Nhacule, Mingas Jamisse, Thapelo, são alguns dos nomes que participaram no disco produzido pelo próprio baixista.
O álbum inicia com o alegre intro Inharrime que cruza sons do sul e do norte do país. Depois Sheila Jesuita canta Dança da minha terra com o saxofone de Moreira Chonguiça a fazer a malha. Muzila, outro credenciado saxofonista, empresta a sua voz na música The System. Tema poderoso conta ainda com os préstimos de Alvim Cossa que é actor de teatro. Wubemba, que se arrisca a ser um hino, é uma suave e brilhante faixa com arranjos, guitarra acústica e eléctrica de António Milisse (Dodó). O tema é forte e tem uma sonoridade única no afiado e excitante vocal de Sheila Jesuita. Noites de Chamanculo é outra bela música apresentada em estilo jazzístico. O disco tem – como não podia deixar de ser, um tema – Speed – onde o baixo é o porta-estandarte.
Saculela é um tema a ter em conta. A timbila, instrumento musical executado magistralmente pelos copi (tchôpi), assume nesta música um papel de destaque. Cheny Wa Gune supera-se. Confirma os pergaminhos que se lhe conhecem. Sons do Gil, Fena Party, Noites de Chamanculo, Dança da minha terra, a par de Hoyo-Hoyo, são outros tantos temas que desfilam no disco. Até podemos não entender as várias línguas que atravessam o álbum mas, como diz e bem Carlos Ruiz Zafó “a letra da canção é o que pensamos entender, mas o que faz com que acreditemos, ou não, é a melodia”; e nesse quesito, Carlos Gove é nota 10.
Pode-se dizer mesmo que não é um disco para o baixista exibir o seu virtuosismo. É uma obra que vale pelo seu conjunto e onde os executantes, cada um a seu tempo, pode mostrar as suas habilidades sem contudo asfixiar o protagonista e nem este sobrepor-se aos demais. Carlos Gove pode, finalmente, com este disco figurar no panteão dos grandes baixistas africanos, a exemplo de Richard Bona e Etienne Mbappe (Camarões), Armand Sabal-Lecco (Camarões), Bakithi Kumalo (África do Sul) ou Ken Okulolo (Nigéria).
Ainda assim, percebe-se o fino domínio do baixo que Gove mostra. Os desenhos e a subtileza que faz em cada um dos números, a maturidade e o discernimento patentes confirmam todos os seus pergaminhos. É um baixista de eleição. Explora o Tapping (tocar com a ponta dos dedos), o Slap (uso do polegar e dos restantes dedos) e o Pizzicato (beliscar as cordas) com uma naturalidade incrível…
Temos em Massone a revelação de um compositor, arranjista, letrista e produtor. NatanielNgomane, sintetizou assim: A revelação inconformista é feita, fundamentalmente, por meio de um ritmo forte, proveniente da cultura copi (tchôpi), o Ngalanga. E é isso mesmo. O Ngalanga está lá mas também a Marrabenta, o Xigubo, o Tufo e a N´fena. A música de Carlos Gove tem fortes elementos rítmicos tradicionais, enquanto incorpora elementos clássicos do jazz. Um cocktail de sons e cores. Nota-se o engajamento do artista na exploração do que é nosso sem subestimar o que é de outras paragens. Aliás, ele sonha com a internacionalização do disco.
Com quase 30 anos de carreira profissional, apetece citar Steve Lacy, instrumentista de jazz que uma vez disse que “o jazz é como o vinho. Quando é novo, é só para os especialistas. Quando envelhece, todo mundo o quer.” Gove também esta cada vez melhor!