“Venho daquelas famílias mais antigas que a própria terminologia ‘régulo’. Na linhagem dos xiteveles faço parte da quarta geração”. Estas foram as primeiras palavras proferidas
por Xavier Xadreque Matola, régulo na localidade de Xitevele, distrito de Boane, província de Maputo, em entrevista feita pelo domingo sobre a sua vida. A conversa decorreu debaixo de uma árvore frondosa em sua casa. O nosso entrevistado afirmou que nunca lhe tinha passado pela cabeça que um dia seria régulo.
Falámos do seu papel como autoridade comunitária naquela localidade e da sua relação conjugal com a japonesa Atsuko Negami Matola, com quem está casado há três anos. Conheceram-se quando ele estava a fazer um trabalho como autoridade comunitária, em Xitevele.
Uma das coisas que nos chamou atenção no régulo foi a sua visão sobre o desenvolvimento das comunidades. Para ele, é preciso trazer as pessoas à realidade, incentivando-as a investir na inovação e exploração dos recursos locais.
Xavier Matola diz que a sua formação lhe permite “navegar em várias águas”, de onde resultaram várias viagens para o estrangeiro, trazendo para a sua comunidade novas experiências de liderança.
Porém, esta liderança hoje é materializada com o apoio da sua esposa formada em Antropologia Social pela Universidade de Londres, na Inglaterra. Acompanhe a entrevista em discurso directo.
Fale-nos da sua origem.
Venho de uma das famílias mais antigas que a própria terminologia régulo. Chamo-me Xavier Xadreque Xitevele. Faço parte da quarta geração na linhagem Xitevele. Sou filho de Madingane Matola, neto de Nwacutsa, bisneto de Mahanya Henhla e tetraneto do próprio Xitevele.
Sou o quarto filho de um total de sete irmãos da primeira casa do meu pai. O meu progenitor tinha três esposas, tendo cada uma a sua casa, mas no mesmo quintal. Não me ocorre o número dos meus irmãos das outras mulheres do meu pai.
FORMADO NA RDA
Como foi a sua infância?
Tive um pai muito exigente e presente como chefe de família. Apesar de ter tido muitos irmãos, eu tinha muita aproximação afectiva com o meu pai, não que os outros não tivessem. Recordo-me que quando ele chegasse à casa eu ia a correr para o seu colo e os outros achavam aquilo exagerado e repreendiam-me quando eu voltasse para o meio deles. Infelizmente, não tive muitas oportunidades para estar com ele, pois aos 14 anos, em 1982, ganhei uma bolsa de estudos para a antiga República Democrática Alemã (RDA), graças a um acordo entre os dois países, que beneficiou cerca de 900 crianças com idade entre os 9 e 14 anos. Quando voltei, o meu pai tinha falecido.
Em que se formou na RDA?
Formei-me na área de turismo. Sou técnico de Indústria Hoteleira e Turismo.
Quando voltou chegou a exercer a profissão?
Não. Quando voltámos, em 1988, fez-se uma espécie de equivalência e foi-nos dado um diploma que não correspondia às nossas expectativas. Talvez por causa da conjuntura que o país vivia. Acabámos sendo enquadrados nas Forças Armadas, mas com a promessa de que não era para irmos para a guerra. Era uma medida temporária.
A formação em turismo foi subaproveitada?
Olha, a minha profissão ajudou-me a navegar em quase todas as águas. Dei a minha contribuição na comunidade para o reconhecimento das autoridades tradicionais pelo Estado e para o direccionamento das comunidades, pois os meus colegas, talvez pela idade e outros pressupostos de conhecimento de leis, tinham um pensamento antigo sobre gestão de recursos humanos.
Em que águas navegou?
Em 2002, com o apoio de uma instituição do Estado, fui ao Zimbabwe em serviço. Em 2003, ganhei um projecto comunitário para abrir furos de água e fornecê-la à população. Quatro povoações beneficiaram-se do projecto. Por ter sido um bom gestor, ganhei uma viagem para Barcelona, em Espanha, e no mesmo ano fui ao Ghana. Em 2010, participei num curso sobre desenvolvimento, no Japão. Estas viagens ajudam-me a ter outra perspectiva de desenvolvimento local com riquezas também locais.
RÉGULO DE XITEVELE
Olhemos para a sua posição hoje no meio dos Xitevele. Como assume a liderança da família não sendo o mais velho?
É uma história muito complexa, mas foi por influência e conhecimento daquelas famílias que conviviam com a minha. Foi algo nuclear e foi-se estendendo a nível de outros Xitevele que tinham influência. Não sou o primeiro filho do meu pai, sou o quarto dos rapazes. Não tinha hipóteses nem nos sonhos remotos de me tornar régulo e chefe da família dos Xitevele. Fui um pouco para a escola e também tive sonhos de me estabelecer algures e fazer a minha vida. Mas por força das circunstâncias e pressupostos tradicionais tive de assumir essa posição, o que não foi pacífico.
Foi reconhecido como autoridade comunitária em 2002. É difícil ser régulo?
Difícil não é. Mas a questão aqui é ter sempre em conta quais são os seus pressupostos e saber como fazer a equação. Saber liderar é algo fascinante.
Estilo moderno
de vida conjugal
Está casado com uma mulher japonesa há cerca de três anos. Como a conheceu?
Em 2009, a Embaixada do Japão veio fazer um estudo de viabilidade para se montar furos de água aqui em Xitevele e a minha esposa, Atsuko, fazia parte da delegação. Foi nessa ocasião que a conheci.
Em 2010, ganhei uma bolsa para frequentar um curso sobre desenvolvimento no Japão. Fui ao Japão em Maio. Ela já estava lá desde Março e, terminado o curso, isto em Junho, voltámos a Moçambique. Casámo-nos em 2010. Nos anos seguintes houve um processo de conhecimento e adaptação à casa, à terra, aos costumes, enfim à convivência.
Como foi o processo de inserção de Atsuko aqui na comunidade?
A convivência com a comunidade e com a família está sob a minha responsabilidade e consigo de certa formar gerir a situação.
Em algum momento sentiu alguma resistência?
Há na vida um ponto irreversível e é preciso saber encontrar esse ponto e termos consciência de que não há recuo. Se tivesse ido a uma loja adquirir algum produto ou boneco qualquer e se tivesse algum defeito devolvia para o reembolso do dinheiro. Não conheço a Atsuko pela comunidade, mas sim pelo impulso natural que tivemos, cabendo a nós, pelos estímulos ou pelos desafios, irmos encontrar pontos cada vez mais comuns para solidificarmos as nossas bases. Mas sempre tendo em conta o futuro da relação e se esse futuro for melhor para a família e para a comunidade melhora ainda mais a nossa harmonia.
Como têm gerido as vossas diferenças?
Ninguém nos recomendou um ao outro. O destino é que nos uniu. Vou exagerar dizendo que temos um estilo moderno de vida, no conceito de gestão, de reconhecer e respeitar o ser de cada pessoa e ter consciência de que cada um tem os seus receios, temperamentos e ansiedades. Existe privacidade no casamento. Temos a consciência de que se essa relação falhar, não precisamos de perder a face, é só haver razões suficientes para que o matrimónio cesse sem tragédias.
Como é que a família dela recebeu a vossa união?
Os japoneses têm princípios muito claros. Sempre tememos o que não conhecemos, mas quando o conhecemos não questionamos e nem sequer levamos uma lupa para decifrar tudo. Conversamos, observamos o suficiente e avaliamos. É natural que todo pai, mãe ou irmão fique com os cabelos em pé ao ouvir que a filha ou irmã vai se casar em África e viver num bosque. Colocando-me na posição deles também me preocuparia, por isso compreendo a preocupação das famílias. Mas, actualmente, o receio da família dela reduziu significativamente.
Como foi o ambiente social no dia do vosso casamento?
No nosso casamento participaram apenas oito pessoas. Um representante dos meus pais, os padrinhos, a conservadora, seu assistente e o chefe da povoação.
Como régulo, porquê optou por um casamento restrito?
A ideia era não expor a minha noiva antes de ir novamente à família dela como genro e pedir a bênção aos pais e desculpas pelo casamento não ter sido aquele que eles tanto desejaram para a filha. Agora, voltando do Japão com a bênção e as pessoas de cá me receberem com bois e sair do aeroporto ao som de buzinas, já não me importava (risos).