O kapenta é um minúsculo peixe, de uns quatro centímetros de comprimento, no máximo, que abunda na albufeira de Cahora Bassa, em Tete. Mas a sua pesca está prenhe de estórias mirabolantes. Os patrões investem em barcos, redes, combustível, entre outros. Como a pescaria é feita à noite, os pescadores vendem o produto por lá e ao amanhecer regressam com uns 10 quilogramas e dizem como crianças inocentes: “Patrão, só conseguimos isto”. Cansados de serem roubados, os patrões agora investem em câmaras de videovigilância.
Dizíamos que o Kapenta é um peixe bem pequeno, mas isso é só no tamanho, porque ele é forte no paladar, rico em proteína e de elevada demanda além-fronteiras. Entretanto, a captura deste “pequeno-grande peixe” dá imenso trabalho. Só visto.
A nossa Reportagem navegou pela imensa albufeira de Cahora Bassa para perceber com que linhas se coze aquele sinuoso processo e se deparou com um quadro penoso em que os proprietários das embarcações deste sector se vêem obrigados a inovar para sobreviver, porque as contrariedades só se multiplicam.
Tais desventuras vão desde a redução do volume e turvação da água da albufeira de Cahora Bassa, roubos da pescaria em plena faina e dificuldades de contratação de mão-de-obra profissional. Pelo que nos foi dado a perceber, alguns conseguem um posto de trabalho mas, assim que o salário lhes cai nas algibeiras, mergulham na bebedeira e somem.
Outros solicitam encarecidamente para serem admitidos e, quando o conseguem, embarcam para a faina. Porém, quando lá chegam, lançam as âncoras e procuram um local tranquilo no meio do barco e põem-se a ressonar como se estivessem num colchão de um hotel de cinco estrelas. De manhã regressam revigorados e de mãos a abanar. Quando questionados sobre a produção da noite dizem: “Patrão, nós pescámos, mas as caixas caíram no lago e perdemos tudo”.
Como se isso não bastasse, há um outro exército de trabalhadores que se candidatam às vagas e trabalham bem. Mas, assim que chega a época chuvosa, “cavam”. Solicitam o salário e regressam às origens para cuidarem da lavra e da sementeira. As empresas voltam a ficar às moscas. É preciso voltar a contratar, formar e esperar pelos resultados.
Porque a situação tende a agravar, alguns empregadores entraram em falência e desfizeram-se das suas embarcações. Outros, mais astutos, estão a investir em camaras de videovigilância, que são instaladas em todos os barcos para terem o mínimo controlo sobre a massa laboral e, sobretudo, da produção.
SAUDADES DUM
PASSADO RECENTEÉ o caso de Leandro Conselho, mais conhecido por Steven, um empresário moçambicano que fez questão de abrir as portas da sua empresa para ajudar a nossa equipa de Reportagem a perceber o que se passa neste desconhecido sector.
“Estamos a montar câmaras de vigilância porque temos registado muitos prejuízos que resultam da proliferação de compradores que abordam os nossos trabalhadores na calada da noite, em plena faina, e estes vendem toda a pescaria e nos trazem uns 10 quilos”, disse.
Conforme referiu, os roubos ou desvios de pescado são tão frequentes que, quando o comprador não aparece até à alvorada, os pescadores introduzem o kapenta em bidões, fecham-nos e deixam-nos flutuar em locais específicos onde a clientela os vai recolher ao longo do dia.
Trata-se de compradores, ou se preferirmos, traficantes, que circulam pela albufeira em barcos de reduzida dimensão ou canoas, e que movimentam um lucrativo negócio uma vez que não têm custos operacionais. Estes só transpiram para remar até ao local onde os barcos kapenteiros estão reunidos, recolher o produto e navegar de volta. O resto é lucro.
Mas este benefício só tem sabor quando estes negociantes furtivos conseguem atracar porque por vezes são derrubados das suas canoas por hipopótamos no meio do lago. Os números relativos a estes acidentes são compilados aqui e ali mas a população local assegura que acontecem com alguma frequência.
Por aquilo que testemunhámos, os riscos de acidentes com hipopótamos não demovem os traficantes, cuja legião só cresce e é cada vez mais composta por estrangeiros, nomeadamente de zimbabueanos, zambianos, malawianos e congoleses que são os maiores apreciadores do kapenta, que também é conhecido como “sardinha da água doce”.
Enquanto uns festejam de bolsos fartos, os empregadores deste sector fazem as contas à vida porque devem adquirir o combustível para os seus barcos (maiores), comprar e consertar redes de pesca e de secagem, fazer a manutenção dos barcos, pagar salários, impostos, entre outras despesas.
No caso de Steven, um dos poucos moçambicanos que ainda resiste neste sector, o seu colectivo de trabalhadores é composto por 43 homens emulheres, entre os quais se destacam 15 marinheiros, três mecânicos, três serralheiros, dois mestres de redes de processamento, 10 mulheres que trabalham no carregamento e processamento do pescado, e outros 10 que prestam serviços diversificados.
Steven apontou ainda que a captura deste peixe requere um investimento mínimo de 10 mil dólares para a aquisição de cada barco (novo) com importantes assessórios como a rede específica de oito milímetros, três lâmpadas, sendo duas suspensas de 400 watts cada e uma de 200 watts que deve submergir com a rede até cerca de 20 metros de profundidade que é por onde o kapenta circula.
Acima disso, naquela região não existe um mercado de redes recomendadas (8 milímetros de diâmetro) pelo que cada empresário deve importá-las do Zimbabwe ou da África do Sul, ou ainda recorrer às lojas localizadas na cidade da Beira, na província de Sofala.
Para além disso, cada embarcação consome pouco mais de 10 litros de Diesel por noite e este carburante é adquirido na vila de Chitima, que dista uns 60 quilómetros do ponto onde se concentram as empresas kapenteiras e o litro deste combustível é vendido a 62 meticais.Depois é preciso somar o custo da licença anual, por barco, que é de 25 mil meticais, mais a Taxa de Fiscalização, mais as embalagens (porque o produto não deve ser vendido a granel), entre outros. Porém, os operadores furtivos vendem o kapenta em montinhos e canecas nos mercados informais.
Proprietário de cinco embarcações, Steven agora recorda com saudade que no período de 2009 a 2011 era possível ter 800 quilogramas (kg) de kapenta em uma única noite de pesca com cinco embarcações. “Se quiserem saber quanto os pescadores nos trazem hoje, esperem até ao amanhecer”.
Com efeito, na manhã seguinte fomos nos posicionar na zona de atracagem dos barcos e assistimos ao descarregamento. Os cinco barcos regressaram com 11 caixas de 30 kg cada. Quando o peixe é processado e seco perde peso e os 30 kg baixam para uns seis a sete quilos (sem sal) e entre 9 e 10 kg (com sal). O quilo é vendido a 30 meticais ou o equivalente em dólares americanos.
O primeiro detalhe que salta à vista para quem chega à costa de Nhabando, no interior do distrito de Cahora Bassa, onde se concentram as empresas kapenteiras, é o elevado número de embarcações atracadas e em movimento.
Steven afirma que “oficialmente são 250, mas nos últimos tempos entraram mais algumas embarcações, pelo que não sei se se tem o número certo. É difícil saber quantos estão a funcionar. Em princípio cada empresa devia ter apenas cinco barcos, mas alguns faliram e venderam e outros alugaram-nas”.
Olhámos para aquele cenário, de barcos e mais barcos em movimento e atracados e pensámos cá entre nós que tanto barco a pescar o mesmo tipo de recurso, o ano inteiro, no mesmo local, só pode dar em prejuízos. Quisemos saber se há período de veda neste sector e a resposta foi espantosa. “Período de veda?! Não temos”.
Assim sendo, em todas as noites os mais de 250 barcos vão à faina para extrair aquele recurso, mas os pescadores negam que a causa dos maus resultados possa residir neste factor. Para eles, o problema está na seca que provoca a turvação das águas e por aí em diante.